segunda-feira, 13 de julho de 2015

A Prática como Critério da Verdade? Marx contra o praticismo




A PRÁTICA COMO CRITÉRIO DA VERDADE?

Nildo Viana

É bastante comum se ouvir a repetição da frase segundo a qual “a prática é o critério da verdade”. Essa frase é atribuída à concepção marxista, mas, no fundo, é leninista. Vários autores já mostraram o antagonismo entre o pensamento de Marx e o de Lênin (Berger, Pannekoek, Korsch, Guérin, etc.), e não cabe retornar a esse assunto aqui. Essa popularização desse equívoco pseudomarxista se deve ao leninismo e à deformação que este faz do marxismo. Lênin e Stálin são aqueles que os pseudomarxistas vão retomar para justificar tal afirmação.

Existe algo em Marx que dê margem para esse tipo de interpretação? Nas Teses sobre Feuerbach existem afirmações que, através de uma má interpretação, podem ser utilizadas para justificar a existência dessa ideia exótica no pensamento de Marx. Uma frase descontextualizada pode servir para esse tipo de interpretação equivocada:
A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade do pensamento isolado da práxis – é uma questão puramente escolástica (MARX, 1991, p. 12).
Uma interpretação apressada e descontextualizada colocaria que tal afirmação significa que a prática é o critério da verdade. Mas uma leitura atenta e contextualizada ajuda a superar essa interpretação reducionista e simplista. O que Marx está colocando é que a questão da verdade é uma questão “prática” e que só se pode demonstrar que um determinado pensamento é verdadeiro na práxis e que fora disso se cai na escolástica. O que isso significa realmente? Para entender o que Marx quer dizer é necessário compreender o que significa, nesse contexto, prática. Mas antes disso é possível entender que aqui Marx está abordando a questão da “prova” da verdade. Essa questão da prova recebe, tradicionalmente, duas respostas, a filosófica e a científica. A prova de uma determinada tese (o que significa provar sua verdade, no final das contas) é racional (filosofia) ou empírica (ciência), ou seja, são duas formas de saber que usam distintos processos de comprovação (VIANA, 2000). Marx recusa a concepção filosófica e portanto não considera que a mera “prova racional” seja suficiente. Isso é facilmente perceptível em toda sua polêmica com a filosofia idealista (Hegel) e os neohegelianos (expressa em suas obras A Sagrada Família; A Ideologia Alemã, etc.). No entanto, nesse texto, ele está criticando uma concepção que se considera “materialista”, a de Feuerbach. Feuerbach era materialista, mas não empiricista. Por conseguinte, é somente a contextualização discursiva (o conjunto das Teses Sobre Feuerbach e do pensamento de Marx) que podemos entender o real significado desta afirmação. Aqui fica claro que Marx contesta tanto a comprovação meramente racional quanto meramente empírica.

A pergunta que fica é: qual é a posição de Marx sobre a questão da verdade e sua comprovação? Não se trata de prova racional e nem de prova empírica. Também não se trata de um “critério” e nem é algo que remete apenas a prática política (partidária, tal como é geralmente compreendida pelos pseudomarxistas). No plano da abordagem dialética, trata-se de fundamentação do saber produzido, da teoria. Essa fundamentação se dá no que Marx denominou “prática”, cujo significado é preciso esclarecer, pois é algo bem distinto do que os pseudomarxistas afirmam. A discussão de Marx remete ao pensamento de Feuerbach e é nesse contexto que ela fica compreensível e é por isso que a palavra “prática” desaparece nos demais escritos de Marx. Na primeira tese Marx afirma:
O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluindo o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente. Eis porque, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo, que, naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis – realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, considera apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano, enquanto que a práxis só é apreciada e fixada em sua forma fenomênica judaica e suja. Eis porque não compreende a importância da atividade “revolucionária”, “prático-crítica” (MARX, 1991, p. 12).
Aqui Marx questiona o materialismo feuerbachiano, pois este concebe a realidade como algo estático (objeto) e não como “atividade”, ou seja, em sua historicidade e seu caráter ativo (o que significa, também, consciente, sensível). Essa oposição estático/histórico (que inclusive é a raiz do que Marx chamou concepção materialista da história, posteriormente conhecido como materialismo histórico em oposição ao materialismo mecanicista e o feuerbachiano, abstrato) no que se refere à concepção de realidade (duas teorias distintas sobre o que é o real) se desdobra em duas formas de conceber o papel da teoria. A concepção feuerbachiana é contemplativa (“considera apenas o comportamento teórico como autenticamente humano”) e de Marx é revolucionária (“a importância da atividade revolucionária”, “prático-crítica”). Isso é perceptível também na quarta tese, na qual afirma que Feuerbach busca dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno mas não resolve a questão do primeiro se fixar nas nuvens, como um reino autônomo, o que só pode ser explicado pelo fundamento terreno. O exemplo de Marx é esclarecedor: “uma vez descoberto que a família terrestre é o segredo da sagrada família, é a primeira que deve ser teórica e praticamente aniquilada”. Aqui o que ocorre é uma digressão de Marx sobre a abordagem de Feuerbach de um fenômeno social específico, a religião, e sua crítica, pois na abordagem deste se observa o avanço em compreender que o fundamento do mundo religioso é o mundo terreno, mas também é perceptível o limite na análise deste último.

Portanto, a concepção de Marx aponta para a crítica do idealismo e também do materialismo feuerbachiano. Feuerbach não compreende o fundamento terreno do mundo religioso, não percebe sua contradição. Para Marx, tal fundamento deve “ser compreendido em sua contradição” e também “revolucionado praticamente”. Aqui voltamos ao significado do termo “prática”. A compreensão limitada desse termo é outro problema no interior do marxismo, inclusive devido à deformação pseudomarxista. “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (MARX, 1991, p. 14). Toda a vida social é prática, o que significa que esse termo não se reduz a um tipo de atividade específica, como querem os pseudomarxistas. Aqui temos uma oposição, o prático, o real, por um lado, e o mundo das ideias, por outro, mas este também é “prático”, não só porque emerge daquele, afinal até a sensibilidade é uma atividade prática, humano-sensível, como coloca na quinta tese.

Nesse sentido, toda a discussão de Marx nesse texto é para colocar a distinção entre relações sociais concretas, percebidas em suas historicidade e totalidade, que aparece através do termo “prática”, e o mundo das ideias, tal como a religião, que é parte do todo composto por tais relações sociais. A questão é que a fundamentação de uma determinada concepção não pode ocorrer através do mundo das ideias e sim do mundo real, concreto, “prático”. Portanto, não é o discurso ou as representações (tal como a religião ou o materialismo contemplativo de Feuerbach) que podem fundamentar uma tese e sua veracidade e sim a análise das relações sociais reais, concretas. Isso revela duas concepções de realidade, a do materialismo histórico e a do materialismo intuitivo de Feuerbach.

Não é uma concepção empobrecida de “prática” que seria um suposto “critério de verdade”. Em Marx, nesse contexto, o real é “prático”, ou seja, atividade realmente existente, que é consciente/sensível, isto é, práxis. A concepção pseudomarxista, especialmente a leninista e seus derivados, reduz a “prática” a algo individual (a prática do indivíduo), retomando Feuerbach mas afirma isso citando Marx. O próprio Marx criticou essa concepção feuerbachiana: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais” (MARX, 1991, p. 14), “por isso Feuerbach não vê que o próprio ‘sentimento religioso’ é um produto social e que o indivíduo abstrato por ele analisado pertence a uma forma determinada de sociedade” (MARX, 1991, p. 14-45).

A síntese de Marx resolve toda essa questão ao retomar a necessidade de ir além da concepção individualista e da sociedade civil burguesa e compreender a totalidade: “o ponto de vista do velho materialismo é a sociedade civil; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade social” (MARX, 1991, p. 14). Assim, numa concepção materialista histórica, nenhuma prática individual, especializada ou localizada[1] pode se arvorar no direito de ser “critério da verdade”, pois a verdade é descoberta na totalidade e é nesta onde há sua fundamentação[2]. Obviamente que isso remete a outras questões, como interesses e classes sociais, que retomaremos adiante.

Logo, retomando a frase inicial de Marx, o significado dela é que a “demonstração” da verdade é algo histórico, que se realiza na vida prática e não no mundo do pensamento. A atividade teórica descobre a verdade ao partir da realidade, do concreto, que é uma totalidade que possui historicidade. O caráter real e “terreno do seu pensamento” é demonstrado na análise da vida social em seu conjunto. O papel da teoria é a superação desse mundo: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX, 1991, p. 14). Outra interpretação que deforma o que Marx quis dizer é visível quando se considera que isso significa uma recusa da interpretação do mundo. A afirmação é sobre a filosofia, que se limitou, ou seja, se impôs um limite, que é interpretar o mundo (sob várias formas, já que são várias filosofias). O que importa, no entanto, é a sua transformação. Por conseguinte, não é suficiente interpretar o mundo, mas é parte do processo, só não se pode limitar a isso. Não há nenhuma recusa da teoria em Marx, ideia absurda e produto de uma interpretação descontextualizada. O que Marx expõe é uma crítica ao materialismo contemplativo. Este mundo deve “tanto ser compreendido em sua contradição, como revolucionado praticamente”, e ao descobrir a verdade de determinado fenômeno social, ele deve ser superado teórica e praticamente.

Quando Marx coloca na quarta tese que “uma vez descoberto que a família terrestre é o segredo da sagrada família”, o que significa que no início do processo há a descoberta, ou seja, um ato de consciência, que a verdade da sagrada família se encontra na família terrestre, então é essa que deve ser “teórica e praticamente” superada, ou seja, recusada tanto no plano da teoria quando do real[3], deixando de existir da forma como existe. Marx, por exemplo, fez a crítica do capitalismo, mas não sua superação concreta, real, “prática”. Da mesma forma, ele fez a crítica da filosofia (e de diversas concepções específicas, como da economia política de Malthus, Proudhon, Hegel, etc.), superando teoricamente essas ideologias, mas não praticamente, ou seja, não no plano real, pois ainda existem malthusianos, proudhonianos, hegelianos, etc.

Essa superação real (“prática”) não pode ocorrer sem a superação teórica, pois ela pressupõe a consciência, ou seja, é práxis revolucionária, que significa atividade teleológica consciente cujo objetivo é a revolução. Não se trata de apenas “prática” ou apenas “teoria”, pois na práxis revolucionária ambas existem juntas, pois ela é atividade orientada por uma finalidade (teleológica, que, no caso, é a revolução) consciente (teoria). Marx explicita isso na terceira tese: “a coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou alteração de si próprio, só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como práxis revolucionária”.

A teoria é, ela mesma, práxis revolucionária, pois é uma atividade, mental em sua constituição, mas prática quando se torna “força material”, ou seja, quando é comunicada, atuando sobre o mundo. Claro que nem toda a “teoria” (em sentido amplo, pois no sentido marxista, ela é revolucionária por essência), pois a finalidade (a revolução) precisa estar presente, bem como a autorreflexão (consciente). A teoria pode superar as ideologias no plano intelectual e contribuir com sua superação real (“prática”) ao existir, ser comunicada, e, principalmente quando se torna força material, ou seja, influente sobre as ações concretas dos indivíduos. A teoria se torna força material, por sua vez, quando expressa necessidades e interesses reais (MARX, 1968). A teoria revolucionária se torna força material quando é comunicada, quando sua circulação é maior, quando mais indivíduos a produzem/divulgam/concretizam. Como já dizia Korsch (1977), as ideias fazem parte da realidade e atuam sobre ela[4]. Mas, as ideias dominantes são as da classe dominante e, por conseguinte, a sua eficácia é relativa em momentos não-revolucionários, mas se torna maior com a ascensão das lutas proletárias e nos momentos revolucionários, pois as necessidades e interesses de classe ficam mais claros e presentes, bem como o antagonismo entre as classes, e as meras reivindicações imediatas passam a ser acompanhadas da efervescência revolucionária. A existência de ideias revolucionárias, no entanto, pressupõe a existência de uma classe revolucionária (MARX e ENGELS, 1991). As ideias revolucionárias, mesmo marginalizadas, atuam sobre a realidade e contribui na luta pela superação do “estado de coisas existente”.

A partir disto podemos concluir que a afirmação de que a prática é o critério da verdade é algo que não tem, pelo menos no sentido reducionista atribuído ao termo “prática”, nenhum fundamento no pensamento de Marx. Essa afirmação tem mais elementos em Engels e principalmente em Lênin e Stálin para se justificar, mas é uma concepção não-marxista e não-dialética, na qual há uma incompreensão tanto do real quanto da teoria. Os praticistas apenas se iludem com práticas especializadas ou localizadas que não trazem em si a percepção da totalidade, elemento fundamental para a práxis revolucionária.

Outro elemento relacionado a esse discurso é que ao colocar a “prática” como critério da verdade, ele desloca para outro lugar a questão das condições de possibilidade de uma consciência correta da realidade. Assim, muitos querem eleger uma suposta “prática” como critério de verdade, compreendendo esse termo de forma individualista. Isso reproduz o que Marx já criticava em Feuerbach e sua crítica da religião, pois ele abstrai o “curso da história” e fixa “o sentimento religioso como algo para-si”, além de “pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado” (MARX, 1991, p. 13). Essa concepção de “prática individual” que seria o critério da verdade (e do caráter revolucionário de um indivíduo, segundo os leninistas e semelhantes) é burguesa, pseudomarxista.

Na teoria de Marx, a verdade é a expressão da realidade e é, portanto, nessa última que podemos chegar a qualquer conclusão ao seu respeito. Por conseguinte, é na realidade concreta, histórica, que se encontra a fundamentação (“comprovação” ou “critérios”) da verdade. Nesse sentido, Marx se opõe tanto ao idealismo e autonomização das ideias, quanto ao materialismo intuitivo, que substitui a totalidade pelo indivíduo abstrato. Uma coisa é a fundamentação da verdade, que se dá na realidade (“prática”), outra coisa é a capacidade ou condições de possibilidade de se chegar até a verdade. Nesse aspecto, Marx coloca que é a perspectiva do proletariado que permite o acesso à verdade (MARX, 1988; MARX, 1968). Por conseguinte, aqueles que afirmam serem os portadores da verdade revolucionária devido sua prática supostamente revolucionária (partidária, sindical, em manifestações, entre outras formas possíveis, ou seja, práticas especializadas ou localizadas) nada têm de marxista e apenas realizam uma autojustificação de sua prática[5].

A perspectiva do proletariado, no entanto, não é a da classe operária “empírica”, a que pode ser acessada pelas pesquisas de opinião pública ou a que se convive com ela em certas fábricas ou lugares. Segundo Marx, “não se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata-se de saber o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser” (MARX, 1979, p. 55). Ou seja, é o ser-de-classe do proletariado, especialmente seu vir-a-ser, sua potencialidade revolucionária, que interessa para a práxis revolucionária. Não se trata de se juntar ao proletariado como classe determinada (em-si) e sim como classe autodeterminada, revolucionária (para-si) e colaborar na concretização dessa última, o que significa agir contra o proletariado como classe determinada (MARX, 1985; VIANA, 2012).

A teoria revolucionária, ao contrário da ideologia, também realiza o mesmo processo: a condição de possibilidade da consciência correta da realidade, da verdade, só é possível partindo da perspectiva do proletariado como classe autodeterminada, revolucionária. Obviamente que em momentos não-revolucionários, isso significa um afastamento entre indivíduos revolucionários (proletários ou não) e a grande maioria da classe proletária (determinada pelo capital, submetido à hegemonia burguesa), mas faz parte de sua luta ampliar o número de proletários revolucionários, o desenvolvimento da consciência, auto-organização, teoria, a crítica das ideias e ideologias dominantes, etc. Qualquer indivíduo ou intelectual que fica no âmbito da classe proletária determinada pelo capital, apenas reproduz a sociedade burguesa e ao invés de fortalecer a tendência de superação do capitalismo, realiza o reforço da tendência de sua reprodução. E nesse caso tanto faz se ele se autonomeie como “marxista”, “anarquista”, “revolucionário”, “prático”, etc.

Logo, trata-se da perspectiva do proletariado revolucionário, ou seja, que nega o capital e a si mesmo. O marxismo nada tem a ver com o obreirismo. Os revolucionários e intelectuais engajados partem da perspectiva do proletariado não quando estão distribuindo panfletos em portas de fábricas (uma imagem muito comum para os leninistas), nem quando estão em manifestações e, muito menos, quando estão em ações burocráticas de partidos e sindicatos. A práxis revolucionária se manifesta em todos os lugares, inclusive na atividade intelectual[6].

Obviamente que partir da perspectiva do proletariado (revolucionário) significa expressar um conjunto de interesses, valores, concepções, que apontam para a necessidade da revolução social e da emancipação humana. Da mesma forma, para aqueles que partem da perspectiva de outras classes, portadoras de outros interesses, valores, etc., ocorre o processo contrário. A verdade é algo bem distante do seu pensamento e ao promoverem o reducionismo dela a uma suposta “prática” (geralmente individualista) apenas mostra que sua prática concreta aponta para a reprodução da sociedade burguesa e do proletariado como classe determinada pelo capital. O praticismo é a ação contrarrevolucionária que se afirma revolucionária e expressa o vanguardismo ou o reboquismo, duas faces da mesma moeda, pois ambas colaboram com o processo de dificultar a passagem do proletariado de classe determinada para classe autodeterminada. O vanguardismo (dirigismo burocrático) e o reboquismo (ativismo obreirista) são complementares e não é atoa que os defensores dessas posições supostamente antagônicas se unem nas ações concretas e como entre os últimos se revelam tanto oportunistas que logo estarão do outro lado quanto ingênuos que servem de bucha de canhão para os vanguardistas e oportunistas.

A luta pela autogestão social é uma luta prática, real, e ocorre no plano da cultura, da teoria, das representações, dos sentimentos, dos valores, bem como nos embates e processos de luta no conjunto das relações sociais, tais como greves, manifestações, lutas cotidianas em locais de moradia, trabalho e estudo, mas, em qualquer uma dessas formas, só ganha sentido revolucionário ao estar coerente e ligado estrategicamente ao objetivo final, não deixando de lado sua “relação com a totalidade” (LUKÁCS, 1989). A crítica da deformação do pensamento de Marx e do marxismo, incluindo esse empobrecimento repetido milhares de vezes sobre uma suposta “prática”, individual ou abstrata, que seria o “critério da verdade” é parte dessa luta cultural que possui sentido revolucionário.

Referências

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Porto: Publicações Escorpião, 1989.

MARX, Karl e Engels, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo: Global, 1985.

MARX, Karl. Crítica de la Filosofia del Derecho de Hegel. Buenos Aires, Ediciones Nuevas, 1968.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988a.

MARX, Karl. Proudhon. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa: Presença, 1979.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl e ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

VIANA, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.






[1] Seja partidária, sindical ou qualquer outra. Os ativistas da pseudoesquerda se julgam portadores da verdade por causa de seu praticismo. Entendem que a prática individual é o critério da verdade, nessa concepção reducionista, e consideram que basta atuar em algo (“prático”, no sentido que eles dão ao termo, ou seja, na prática partidária, sindical ou “junto com os trabalhadores”) para se considerararem “revolucionários”. Alguns praticistas, sem ligações com organizações burocráticas (partidos, sindicatos), podem ser honestos e bem intencionados, mas influenciados por ideologias ou concepções problemáticas ou mal interpretadas (tal como na interpretação deformada da concepção de Marx), acabam reproduzindo os equívocos “práticos” e “representacionais” dos pseudomarxistas.

[2] “[...] o critério da verdade reside no encontro com a realidade” (LUKÁCS, 1989, p. 225).

[3] A superação teórica significa que determinada concepção é refutada, mas que persiste, pois para sua superação real é necessário um ato coletivo e total para sua concretização, ou seja, a revolução social. A superação teórica é também “prática” (real), mas que não é generalizada e essa generalização só se concretiza com a transformação do conjunto das relações sociais, ou seja, com uma revolução social (total), promovendo sua superação real. Por conseguinte, a superação teórica é uma superação real (“prática”) parcial, que só se torna total com a revolução social, sua generalização e concretização. Assim, a ideologia liberal (bem como milhares de outras) já foi superada teoricamente, mas é preciso que tal superação seja generalizada, o que significa a abolição da mentalidade e hegemonia burguesas, para ser a superação real, total, o que só ocorre com a transformação radical do conjunto das relações sociais.

[4] “O critério da adequação do pensamento é a realidade, com certeza. Mas essa realidade não é, devém, não sem que o pensamento contribua para isso” (LUKÁCS, 1989, p. 226).

[5] Os praticistas da pseudoesquerda apenas tentam justificar e legitimar sua prática burocrática (sindical ou partidária) através desse discurso ideológico e pseudomarxista, fundamentando-se numa concepção metafísica, pré-marxista. Outros praticistas o fazem por influência de ideologias e concepções, bem como por doutrinas e até mesmo teorias mal digeridas, apesar de sua possível honestidade pessoal. Apesar das diferenças, ambos são equivocados e acabam beneficiando a reprodução da sociedade burguesa e do burocratismo (incluindo o da pseudoesquerda e por isso não é difícil ver alguns praticistas honestos – embora nem todos nesse caso sejam honestos – se aliar com os praticistas da pseudoesquerda, pois ambos, uns por seu vanguardismo que quer manter as massas em seu estado de não autonomia seguindo eles, outros por evitar o vanguardismo e não querer intervir, caindo no reboquismo, achando que a classe por si só se liberta e basta ficar ao seu lado na “prática”, para agir revolucionariamente). Eles realizam a “prática” de não colaborar com o avanço da luta proletária num sentido revolucionário e por isso são tão conservadores quanto os pseudomarxistas. Claro que, nesse grupo de praticistas não-burocráticos, existem os oportunistas, que, com esse discurso, podem fazer todo tipo de aliança (com os modismos ideológicos, ideologias conservadores, pseudoesquerda, grupos acadêmicos conservadores, etc.) e apesar de sua visível posição ambígua e moderada, passam por esquerdistas devido sua “prática”, apenas participando ou apoiando mobilizações sociais (alguns fazem isso ao mesmo tempo em que no seu lugar de trabalho reproduzem as concepções burguesas e burocráticas). Tem também aqueles movidos por uma fé irracional e por isso acreditam no praticismo como algo “revolucionário”, aproximando-se de uma concepção semirreligiosa e cega, onde basta seguir os rituais da prática para considerar que faz algo relevante para a transformação social. Claro que em alguns casos, isso tem a ver com a preguiça mental de certos militantes, que não se dispõem a fazer leituras e análises mais profundas, o que é bem pouco revolucionário, já que se posicionam e querem se opor à outras concepções (sem conhecê-las) e pessoas, sem nenhum fundamento. Pensam que um processo revolucionário e tarefa imensa e complexa de colaborar na constituição de uma nova sociedade pode ocorrer com base em praticismo e sem fornecer uma colaboração intelectual através duma submersão acrítica junto aos “trabalhadores”, portando apenas seus dogmas e leituras superficiais.

[6] Tanto essa interpretação de Marx é verdadeira que é possível fundamentá-la na realidade, usando não apenas os seus escritos, mas também por sua biografia e determinadas afirmações, tal como aquela na qual disse que contribuiria mais com a revolução na biblioteca de Londres (escrevendo O Capital) do que em outro lugar.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Marx Segundo Korsch - Paul Mattick


Marx segundo Korsch
Resenha do livro “Karl Marx”, de Karl Korsch*
Paul Mattick


Com marcante distinção a respeito de muitas outras interpretações de Marx, este livro se concentra nos fundamentos essenciais da teoria e prática marxistas. O autor reafirma “os princípios e conteúdos mais importantes da ciência social de Marx à luz dos acontecimentos históricos recentes e das novas necessidades teóricas que têm surgido pelo impacto destes acontecimentos”. O livro não foi publicado para agradar ao curioso, nem corresponde ao interesse de nenhum grupo particular. Apesar de sua densidade e objetividade, é uma ferramenta teórica útil para as aspirações da classe proletária; ao resenhá-lo, não podemos fazer nada melhor que indicar, embora inadequadamente, sua riqueza e seu valor.

O livro se divide em três partes: Sociedade, Economia Política e História. O marxismo é declarado “a genuína ciência social do nosso tempo” e sua superioridade em relação à ciência pseudossocial da burguesia é demonstrada ao longo do livro.

Captar o princípio da especificidade histórica em Marx é da maior importância para a compreensão do fenômeno social. Marx usa os conceitos econômicos, sociais e ideológicos “apenas quando necessário para seu tema principal, ou seja, o caráter específico assumido por eles na moderna sociedade burguesa”. As chamadas “ideias gerais” sempre tem que ter um elemento histórico específico. Por exemplo, o falso conceito idealista da evolução tal como é aplicado pelos teóricos sociais burgueses

está     fechado por ambos os lados, e em todas as formas passadas da sociedade apenas se redescobre a si mesmo. O princípio marxista do desenvolvimento é, inversamente, aberto por ambos os lados. Marx define a nova sociedade comunista que surge da revolução proletária não apenas como uma forma mais desenvolvida do que a sociedade burguesa, mas como um novo tipo que não pode ser explicado por meio de nenhuma das categorias burguesas.

É necessário, especialmente hoje, reafirmar esta posição marxista, deixando claro, ao considerar a literatura recente sobre socialismo, que simplesmente imagina a sociedade socialista como uma forma modificada de capitalismo e, usando diferentes nomes, transfere todas as categorias capitalistas à “nova” sociedade.

O princípio da especificidade histórica, tal como utilizado por Marx, não exclui um grau necessário de generalização. Contudo, leva a um novo tipo de generalização. Com Marx,

o “geral” do conceito já não se coloca confrontado à realidade concreta como em outro reino, senão com todo o geral, incluso em sua forma conceitual, permanecendo necessariamente como um aspecto específico ou uma parte mentalmente fragmentada do concreto histórico da existente sociedade burguesa.

A atual tagarelice popular sobre a “metafísica do materialismo dialético”, embora não seja tratado por Korsch, é não obstante contestado por ele quando assinala que

se Marx, de fato, partiu de uma inversão crítica e revolucionária dos princípios inerentes ao método de Hegel, certamente continuou desenvolvendo, de uma maneira estritamente empírica, os métodos específicos de sua própria crítica e investigação materialistas.

O entusiasmo dos últimos dos críticos do “senso comum” é o que tem menos justificação, enquanto que a teoria marxista,

trata todas as ideias como estando conectadas com uma época histórica definida e com uma forma de sociedade específica que pertence a tal época, se reconhece a si mesma como nada mais do que um produto histórico, como qualquer outra teoria que pertence a uma fase definida do desenvolvimento social e a uma classe social definida.

A segunda parte do livro aponta de início que “a Economia Política, que trata da fundamentação material do Estado burguês existente, é, para o proletariado, o primeiro e mais destacado inimigo”. O autor descreve a história do pensamento econômico burguês de modo bastante conciso e mostra porque qualquer “desenvolvimento genuíno da Economia Política foi excluído pelo desenvolvimento histórico real da sociedade burguesa”. A crítica de Marx à Economia Política não era, como se assume frequentemente, um desenvolvimento superior da ciência econômica burguesa, mas a teoria de uma revolução iminente. As diferenças entre os conceitos econômicos clássicos e os marxistas são demonstradas da maneira bastante esclarecedora e mostra que os avanços marxistas

da teoria econômica clássica são importantes, não por seu puro avanço formal sobre o conceito clássico, mas por sua transferência clara e decidida do pensamento econômico do campo da troca de mercadorias e das concepções legais e morais do bem e do mal que dela se originam, ao campo da produção material tomado em sua plena significação.

Pensamos que os melhores capítulos do livro são aqueles dedicados ao fetichismo das mercadorias e a Lei do valor. O autor mostra novamente que: “as ideias e princípios mais gerais da Economia Política são meros fetiches que mascaram as relações sociais efetivas, prevalecentes entre os indivíduos e as classes dentro de uma época histórica definida da formação socioeconômica”, e indica ademais que a exposição teórica do caráter fetichista das mercadorias é “não somente o núcleo da crítica da economia política marxista, mas ao mesmo tempo a quintessência de sua teoria econômica do capital e a definição mais explícita e mais exata do ponto de partida teórico e histórico de toda a ciência materialista da sociedade”. Esses capítulos estão condensados com tal destreza, sem com isso perder clareza, que fazem inútil qualquer intenção de reiteração. Os pensamentos não podem expressar-se em uma linguagem mais precisa e efetiva e unicamente podemos nos limitar a dizer que o autor vê a tarefa do proletariado revolucionário como “a destruição final do fetichismo mercantil capitalista mediante uma organização social direta do trabalho”. A importância da atual organização social do trabalho, que é ocultada sob as relações de valor manifestas nas mercadorias, é demonstrada fazendo referência às atuais intenções ilusórias de “planificação” capitalista, que só pode perturbar ainda mais a “ordem” que é peculiar ao capitalismo e foi produzido pelas necessidades cegas da fetichista lei do valor.

Outro capítulo expõe as más interpretações comuns da doutrina marxista do valor e do mais-valor, e é muito oportuna devido aos novos ataques lançados pelo “liberalismo” em torno ao caráter “acientífico” da teoria econômica marxista. Pois se argumenta, uma e outra vez, que a teoria do valor de Marx deve estar equivocada dado que aborda o problema exclusivamente do lado da oferta e é, por conseguinte, incapaz de abordar o problema dos preços reais. Contudo, Korsch afirma que

Nunca foi a intenção de Marx derivar da ideia geral do valor, tal como foi exposta no primeiro volume de O Capital, por meio de determinações cada vez mais estreitas até uma determinação direta do preço das mercadorias. A importância particular da lei do valor dentro da teoria de Marx não tem nada a ver com uma fixação direta dos preços das mercadorias por seu valor.

As diversas exposições dos economistas burgueses, tentando provar discrepâncias entre a lei do valor e das constelações efetivas dos preços, discrepâncias devidas, segundo creem, à “unilateralidade” do conceito de valor de Marx, estão inteiramente fora do lugar. E é bastante divertido notar que a aplicação de Marx da lei do valor à força de trabalho é rechaçada com o argumento da flexibilidade dos salários, um argumento que só demonstra que esses economistas burgueses desconhecem a posição de seu oponente. De acordo com Marx: “não há nenhuma relação econômica ou racionalmente determinável entre o valor e as novas mercadorias produzidas pelo uso da capacidade viva do trabalho na fábrica e os preços pagos por este trabalho a quem a vendem”.

 A última parte do livro trata da concepção materialista da história. Embora tenha uma origem filosófica, Korsch aponta que a ciência materialista de Marx, “sendo uma investigação estritamente empírica de formas históricas e definidas de sociedade, não necessita um suporte filosófico”. Descrevendo o desenvolvimento científico de Marx, mostra que “já em 1843, se tornara claro para Marx que a Economia Política era a chave de toda a ciência social”. No lugar do eterno desenvolvimento da “Ideia”, Marx colocou o desenvolvimento histórico real da sociedade sobre a base do desenvolvimento do modo de produção material. Em um capítulo que trata da relação entre Natureza e Sociedade, Korsch mostra que

como com todas as demais inovações incorporadas na nova teoria materialista, a extensão metódica por parte de Marx, da sociedade a expensas da natureza, é demonstrada principalmente sobre o campo da ciência econômica.

Depois de esclarecer vários conceitos marxistas, tais como a relação entre forças produtivas e relações de produção e base e superestrutura da sociedade, Korsch explica o que Marx queria dizer ao afirmar que “o verdadeiro limite histórico da produção capitalista é o próprio capital”, e que somente a revolução proletária, ao alterar as relações de produção, pode assegurar o desenvolvimento progressivo ulterior das forças sociais da produção.

Mas embora estejamos de acordo em grande medida com esta interpretação de Marx, não podemos nos abster de comentar que a sua grande clareza e coerência revolucionária ao tratar do pensamento de Marx fica atenuada no momento em que aborda os acontecimentos revolucionários mais recentes e suas características. Por exemplo, o deslocamento da ênfase entre as formulações mais iniciais e as mais tardias dos princípios materialistas por parte de Marx, do fator subjetivo da luta de classes revolucionária a seu desenvolvimento objetivo subjacente está, na interpretação de Korsch, causado porque os desenvolvimentos efetivos impõem uma mudança de atitude. “De maneira similar”, diz, “o marxista revolucionário Lênin confrontou-se com as tendências revolucionárias ativistas dos comunistas de esquerda de 1920 que, em uma situação objetivamente alterada, aderiram às palavras de ordem da situação revolucionária direta provocada pela Grande Guerra”.

Esta defesa tardia do panfleto oportunista e bastante pueril de Lênin, O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, que foi escrito para assegurar o controle russo sobre o movimento operário internacional para o interesse específico da Rússia e seu Partido Bolchevique, não pode mudar o fato de que a “mudança de lado” de Lênin não foi o resultado de uma consideração sóbria de uma situação alterada, pois não significou nenhuma mudança real. Este panfleto de Lênin mantinha a posição que sempre teve diante da oposição revolucionária de setores do proletariado da Europa ocidental. Esta posição era a mesma que possuía também durante o tempo que, segundo Korsch, era objetivamente revolucionário. Era a posição da socialdemocracia dos tempos de pré-guerra, que Lênin nunca abandonou mentalmente, mas só organizativamente. Está entrelaçada com a posição do revolucionário burguês russo e em estrita oposição a todos os princípios revolucionários específicos da classe trabalhadora antes, durante e depois da Grande Guerra. Estava em estrita oposição, também, aos princípios marxistas, esquecidos tanto pelos socialistas como pelos bolcheviques e que, reafirmados aqui, fazem desta obra, goste ou não seu autor, uma arma contra o Lênin “marxista”.





* KORSCH, Karl. Karl Marx. Londres, London School Of Economics, 1938. Tradução de Jaciara Reis Veiga.