quarta-feira, 6 de abril de 2022

Paul Mattick e o comunismo de conselhos segundo Pozzoli

Paul Mattick e o comunismo de conselhos segundo Pozzoli




O historiador Cláudio Pozzoli retoma o pensamento de Paul Mattick e o comunismo de conselhos no sentido de mostrar as origens históricas e as ideias básicas que são expressas por essa corrente política. A partir de uma breve biografia de Mattick, uma análise da teoria conselhista, Pozzoli retoma algumas das principais teses de Paul Mattick.

Para todos que se interessam pelo pensamento de Paul Mattick ou pela comunismo de conselhos, ou então pelos embates políticos que vão desde a Revolução Alemã até os anos 1960, é uma leitura útil e que traz vários momentos para reflexão.


O prefácio de Marcus Gomes traz mais informações, uma reflexão crítica sobre os limites da abordagem de Pozzoli, entre outros elementos que enriquecem a obra.

Mais informações: https://www.edicoesenfrentamento.net/post/mattick-e-o-comunismo-de-conselhos-segundo-pozzoli






terça-feira, 5 de abril de 2022

Nildo Viana lança livro sobre Comunismo de Conselhos

 Nildo Viana lança livro sobre Comunismo de Conselhos


O sociólogo e filósofo Nildo Viana, autor de diversas obras e professor da Universidade Federal de Goiás, lançou sua obra "Sobre a história e Significado do Comunismo de Conselhos". A obra trata da origem e história do comunismo de conselhos, bem como seu significado como corrente política, abordando também as concepções dos representantes teóricos do comunismo de conselhos. É uma obra fundamental para todos que querem entender o que é o comunismo de conselhos e entender essa importante corrente do marxismo.






Mais informações:https://www.edicoesenfrentamento.net/post/comunismo-de-conselhos

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

“AS BARRICADAS DEVEM SER REMOVIDAS”: FASCISMO STALINISTA NA ESPANHA


“AS BARRICADAS DEVEM SER REMOVIDAS”:
FASCISMO STALINISTA NA ESPANHA

Paul Mattick

Em 7 de maio de 1937, a CNT-FAI de Barcelona transmitiu a seguinte ordem: “As barricadas devem ser removidas. As horas de crise passaram. A calma deve ser estabelecida. Mas circulam pela cidade rumores que contradizem os informes sobre o retorno à tranquilidade que agora ordenamos. As barricadas contribuem para a confusão. Não necessitamos de barricadas, já que a luta acabou. As barricadas não têm mais nenhum objetivo; sua permanência pode dar a impressão de que desejamos voltar à situação anterior – e isto não é verdade. Camaradas, vamos cooperar para o total restabelecimento de uma vida normal. Tudo que impede o retorno à normalidade deve desaparecer”.
Então, recomeçou a vida normal, isto é, o terror do fascismo stalinista. Assassinatos e prisões de trabalhadores revolucionários. Foram desarmadas as forças revolucionárias, calados os seus jornais e emissoras de rádios, entregues as posições conquistadas. A contrarrevolução triunfou na Catalunha, região onde o socialismo, como nos era frequentemente assegurado pelos líderes anarquistas e do POUM, avançava. As forças contrarrevolucionárias da Frente Popular foram bem acolhidas pelos líderes anarquistas. Das vítimas era esperado que saudassem os seus algozes. “Quando se tentou encontrar uma solução e restabelecer a ordem em Barcelona”, lê-se em um boletim da CNT, “a CNT e a FAI foram os primeiras a oferecer sua colaboração; foram as primeiras a propor o cessar-fogo e tentar a pacificação de Barcelona. Quando o governo central restabeleceu a ordem pública, a CNT estava entre os que primeiro colocaram seus efetivos à disposição das autoridades. Quando o governo central decidiu enviar tropas à Barcelona, para subjugar as forças políticas que não se submetiam às autoridades públicas, a CNT foi a única a determinar que fosse facilitada a passagem dos militares”.
Sim, a CNT fez o possível para trazer a contrarrevolução de Valência a Barcelona. Os operários detidos podem agradecer às lideranças anarquistas por sua prisão, que termina diante de um pelotão de fuzilamento dos fascistas stalinistas. Assassinados, são removidos com suas barricadas; são silenciados para que as lideranças anarquistas possam continuar falando. Que excitação a dos neobolcheviques: “Moscou assassinou trabalhadores revolucionários – gritam. Pela primeira vez em sua história, a Terceira Internacional está disparando do outro lado das barricadas. Antes, somente traíam a causa, mas agora lutam abertamente contra o comunismo”. O que esperavam do capitalismo de estado russo e de sua legião estrangeira esses irados falastrões? Que ajudasse os trabalhadores revolucionários? O capitalismo, em todas as suas formas, só tem uma resposta para os trabalhadores que lutam contra a exploração: a morte. Uma frente única com socialistas e com “comunistas” de partido é uma frente única com o capitalismo. É inútil denunciar Moscou e também não faz sentido criticar os socialistas: ambos têm que ser enfrentados até o fim. Mas, agora, os trabalhadores revolucionários têm de reconhecer que as lideranças anarquistas, que os burocratas da CNT e da FAI também estão no campo inimigo. Unidos ao capitalismo, servem ao capitalismo. Onde as palavras perderam sua força, a traição tornou-se a ordem do dia. Amanhã, essas lideranças poderão estar disparando contra os trabalhadores revolucionários, como o fazem hoje os verdugos “comunistas” do quartel Karl Marx. A contrarrevolução estende-se de Franco a Santillán.
Uma vez mais, como tantas outras, os trabalhadores revolucionários, decepcionados, denunciam a covardia de suas lideranças e procuram se reorganizar em torno de novos e melhores líderes. Os “Amigos de Durruti” romperam com as lideranças corruptas da CNT e da FAI, de modo a recuperar as práticas anarquistas originais. Aprenderam alguma coisa, mas não o suficiente. Os militantes do POUM decepcionam-se com Gorkin, Nin e Companys. Como esses leninistas não são suficientemente leninistas, procuram outros mais capacitados. Algo aprenderam, mas muito pouco. A tradição do passado lhes pesa como uma pedra amarrada ao pescoço. A substituição dos homens e o renascimento da organização revolucionária, porém, não bastam. Uma revolução comunista não é feita por líderes e organizações, mas pelos trabalhadores, pela classe operária. Uma vez mais, os trabalhadores revolucionários aguardam esperançosos por mudanças na Frente Popular, que poderiam, finalmente, imprimir-lhe um caráter revolucionário. Caballero, descartado por Moscou, voltaria, carregado nos ombros pelos militantes da UGT, que teriam aprendido e visto a luz. Moscou, desapontada por não obter o apoio adequado das nações democráticas, radicalizaria. Tudo isto é balela! As forças da Frente Popular, Caballero e Moscou são incapazes, mesmo que o quisessem, de derrotar o capitalismo na Espanha. As forças capitalistas não podem agir como socialistas. A Frente Popular não é um mal menor para os trabalhadores revolucionários. É simplesmente outra forma de ditadura capitalista, ao lado do fascismo. A luta deve ser contra o capitalismo.
A atual posição da CNT não é nova. Há poucos meses, o presidente catalão, Companys, disse que a CNT “não se opõe ao regime democrático da Espanha; ao contrário, sua posição é de defesa da legalidade e da ordem”. Como as outras organizações antifascistas espanholas, a CNT, apesar das frases radicais, limitou-se a fazer a guerra, ou seja, lutar contra Franco. O programa de coletivização, parcialmente realizado para atender às necessidades da guerra, não se contrapunha aos princípios capitalistas nem ao próprio capitalismo. Na medida em que a CNT considera esse programa o objetivo final, isto apenas sugere alguma forma de capitalismo de estado, no qual a burocracia sindical e seus filosóficos amigos anarquistas exerceriam o poder. E mesmo esse objetivo foi adiado para o futuro distante. Nenhum passo efetivo foi dado nessa direção, porque o movimento em direção ao sistema de capitalismo de estado significaria o fim da Frente Popular, o soerguimento das barricadas na Catalunha, e uma guerra civil dentro da guerra civil. A contradição entre sua “teoria” e sua “prática” foi explicada pelos anarquistas assim como o fazem os impostores, isto é, a “teoria é uma coisa e a prática outra, e a prática não é previsível como a teoria”. A CNT percebeu que não tinha um projeto para a reconstrução da sociedade. Percebeu, também, que não tinha o apoio das massas espanholas, mas apenas de uma parte dos operários em determinada parte do país. Percebeu, enfim, sua debilidade, tanto nacional quanto internacional, e que sua verborragia radical mal dissimulava a absoluta fraqueza do movimento nas condições criadas pela guerra civil.
Há muitas desculpas possíveis para a posição dos anarquistas, mas não há nenhuma para seu programa de falsificação, que confundiu o movimento operário e colaborou para o avanço do fascismo stalinista. Tentando fazer acreditar que o socialismo estava em marcha na Catalunha, e que isso era possível sem romper com o governo da Frente Popular, acabavam fortalecendo a Frente Popular, tornando-a capaz de se impor também aos operários anarquistas espanhóis. O anarquismo espanhol aceitou uma forma de fascismo, disfarçada de movimento democrático, para derrotar o fascismo de Franco. Não é verdade, como os anarquistas hoje afirmam, que não havia outra alternativa e que, por isso, todas as críticas à CNT são injustificadas. Os anarquistas poderiam ter tentado, após 19 de julho de 1936, estabelecer o poder operário na Catalunha; poderiam, também, em maio de 1937, ter tentado esmagar as forças do governo de Barcelona; poderiam, enfim, ter marchado tanto contra os fascistas de Franco como contra os fascistas stalinistas. Muito provavelmente, seriam derrotados. Possivelmente, Franco ganharia a guerra, estraçalhando tanto os anarquistas quanto os seus adversários da Frente Popular. Uma intervenção direta dos estados capitalistas talvez acontecesse. Mas havia outra possibilidade, embora menos provável. Os operários franceses ultrapassariam o mero estado de greve; a intervenção dos estados capitalistas provocaria uma guerra mundial; a luta se daria efetivamente entre Capitalismo e Comunismo. Seja o que for que tivesse acontecido, uma coisa é certa: as condições caóticas do capitalismo mundial tornar-se-iam mais ainda caóticas. Não é possível a transformação social sem catástrofes. Qualquer ataque desferido contra o sistema capitalista precipitaria uma reação, mas essa reação se produziria de todo modo, ainda que com algum atraso. Esse atraso custaria mais vidas de operários do que qualquer outra tentativa anterior para esmagar o sistema de exploração. Mas um ataque efetivo contra o capitalismo poderia criar condições mais favoráveis à ação internacional da classe operária e/ou ao acirramento das contradições capitalistas, precipitando o desenvolvimento histórico para sua ruptura. No princípio está a ação. Mas a CNT, assim nos foi dito, sentiu-se responsável pela vida dos operários; quis evitar um desnecessário banho de sangue. Quanto cinismo! Mais de um milhão de pessoas já morreram na guerra civil. Se alguém tinha necessariamente que morrer, que fosse por uma boa causa.
A luta contra o capitalismo – luta que a CNT queria evitar – é inevitável. A revolução proletária ou é radical desde o início ou será esmagada. É necessária a completa expropriação das classes dominantes, a eliminação de qualquer poder que não seja o dos operários em armas, o aniquilamento de tudo que se oponha à marcha revolucionária. Isto não aconteceu. Logo, a carnificina de maio em Barcelona e a eliminação dos militantes revolucionários em toda a Espanha se tornaram inevitáveis. A CNT nunca pôs a questão da revolução do ponto de vista dos operários, preocupava-se apenas com a organização. Agia em nome e com o apoio dos operários, mas nunca se interessou pela iniciativa autônoma e a ação direta destes, fora do controle da organização. O importante não era a revolução, mas a CNT. E, do ponto de vista da CNT, os anarquistas deviam reconhecer a diferença entre fascismo e capitalismo, entre guerra e paz. Assim, impôs-se a participação da CNT nas políticas nacional-capitalistas, pedindo aos trabalhadores que cooperassem com um inimigo, para esmagar o outro, conseguindo apenas retardar seu massacre pelo primeiro. O palavrório radical dos anarquistas não era para ser levando a sério, mas servia como instrumento de controle dos operários pelo aparato da CNT; “sem a CNT (escreviam orgulhosos), a Espanha antifascista seria ingovernável”. Queriam, como se vê, participar do governo e da dominação dos operários. Só queriam sua parte do butim, já que reconheciam faltar-lhes condições para se apropriar totalmente dele. Como os bolcheviques, identificaram as necessidades de sua organização com as necessidades da classe operária. O que decidiam era o melhor. Os trabalhadores não deveriam pensar e decidir por si mesmos, pois isto atrapalharia a luta, causando confusão; deveriam, isto sim, apenas seguir os seus salvadores. Não houve qualquer tentativa, por mais simples que fosse, de organizar e consolidar o poder da classe operária. A CNT falava como anarquista e atuava como bolchevique, isto é, como capitalista. Com o propósito de dirigir ou de compartilhar a direção, a CNT tinha de se opor à ação direta, à iniciativa autônoma da classe operária e, portanto, de defender a legalidade, a ordem e o governo.
Mas havia outras organizações no campo legalista, que nada tinham em comum, a não ser o fato de lutarem pela hegemonia na direção da classe operária. A cota de poder que eventualmente conquistavam não impedia que lutassem entre si. Às vezes, todas as organizações são obrigadas a cooperar, mas isto apenas significava o adiamento do inevitável ajuste de contas. Um único grupo deve dominar. Enquanto os anarquistas conseguiam “um sucesso atrás do outro”, sua posição era continuamente minada e debilitada. A proclamação da CNT, de que não se imporia às outras organizações, nem as combateria, era, na realidade, um desesperado apelo para que não a atacassem, ou seja, o reconhecimento de sua fragilidade. Seguindo a reboque da política capitalista, com seus aliados da Frente Popular, a CNT forçou as massas a escolher seus representantes no campo burguês. Aquele que oferecesse mais teria a melhor chance. O fascismo stalinista tornou-se moda, mesmo na Catalunha. As massas viram no apoio de Moscou a força necessária para afastar Franco e a guerra. Moscou e o governo da Frente Popular significavam o apoio do capitalismo internacional. Moscou ganhou em influência, pois as massas ainda tendiam a favor da continuidade de uma sociedade baseada na exploração. E se mantiveram essa atitude favorável foi porque os anarquistas nada fizeram para esclarecer a situação, isto é, para mostrar que a ajuda de Moscou nada mais significava do que a luta por uma forma de capitalismo, o que só agradava algumas potências imperialistas na medida em que agredia outras.
Os anarquistas tornaram-se publicitários da variante stalinista do fascismo, lacaios dos interesses capitalistas que se opunham a Franco, na Espanha. A revolução converteu-se no parque de diversões das potências imperialistas rivais. As massas deviam morrer sem saber por que ou por quem. O confronto deixou de ser assunto dos trabalhadores. E, agora, deixou de ser assunto também da CNT. A guerra pode terminar a qualquer momento, mediante acordo entre as potências imperialistas. Pode terminar com a vitória ou a derrota de Franco. Este pode abandonar Itália e Alemanha, aliar-se à Inglaterra e à França, ou aqueles países podem deixar de apoiá-lo. A situação na Espanha pode ser decisivamente alterada pela guerra latente no Extremo Oriente. Há outras possibilidades, além da mais provável de todas: a vitória do fascismo e Franco. Mas – a não ser que os trabalhadores levantem novas barricadas, também contra a república, e ataquem efetivamente o capitalismo – o resultado da luta na Espanha, qualquer que seja ele, não terá qualquer significação real para a classe operária, que continuará explorada e oprimida. Uma modificação da situação militar na Espanha poderia forçar o fascismo stalinista a travestir-se de revolucionário. Mas, do ponto de vista dos operários espanhóis e do mundo inteiro, não há diferenças entre o fascismo de Franco e o fascismo de Stálin, por muitas que sejam as diferenças entre Franco e Stálin.
Se as barricadas se levantarem outra vez, não deverão ser removidas. A palavra de ordem revolucionária para a Espanha é: “Abaixo os Fascistas e abaixo os Legalistas!” Por mais inútil que pareça lutar pelo comunismo, na presente situação mundial, este continua sendo o único caminho para a classe operária. “É melhor seguir o caminho verdadeiro, ainda que pareça inútil, do que desperdiçar energias em falsos atalhos. Ao menos, preservaremos nosso sentido da verdade e da razão a todo custo. Mesmo que seja o custo de sua inutilidade.”
International Communist Correspondence, Chicago, n° 7-8, agosto de 1937




quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A Luta Contra o Fascismo Começa Pela Luta Contra o Bolchevismo


A Luta Contra o Fascismo Começa Pela Luta Contra o Bolchevismo


Otto Rühle


I
É preciso colocar a Rússia na primeira linha dos novos Estados totalitários. Ela foi a primeira a adoptar o novo princípio de Estado. Foi ela que levou mais longe a sua aplicação. Foi a primeira a estabelecer uma ditadura constitucional, com o sistema de terror político e administrativo que o acompanha. Adoptando todas as características do Estado totalitário, tornou-se assim o modelo para todos os países constrangidos a renunciar ao sistema democrático para se voltarem para a ditadura. A Rússia serviu de exemplo ao fascismo.
Não se trata absolutamente de um acidente nem de uma brincadeira de mau gosto da história. A semelhança de sistemas, longe de ser apenas aparente, é aqui real. Tudo mostra que enfrentamos expressões e consequências de princípios idênticos aplicados a níveis diferentes de desenvolvimento histórico e político. Que isso agrade ou não aos partidos "comunistas", o facto é que o Estado, como a maneira de governar na Rússia, em nada difere da Itália e da Alemanha. Eles são fundamentalmente semelhantes. Pode-se falar de um "Estado soviético" vermelho, negro ou castanho, assim como de um fascismo vermelho, negro ou castanho. Mesmo se existem entre países certas diferenças ideológicas, a ideologia nunca teve uma função determinante. Aliás, as ideologias são mutáveis, e tais mudanças não refletem forçosamente o carácter e as funções do aparelho de Estado. Por outro lado, a manutenção da propriedade privada na Alemanha e em Itália não passa de uma modificação secundária. A abolição da propriedade privada pode ser abolida no quadro do capitalismo. O que determina de facto uma sociedade socialista é, além da abolição da propriedade privada dos meios de produção, a gestão pelos operários dos produtos do seu trabalho, e o fim do salariato. Tanto na Rússia como na Itália estas condições não estão preenchidas. Se bem que, segundo alguns, a Rússia esteja mais próxima do socialismo que outros países, daí não se deduz que o "Estado soviético" tenha ajudado o proletariado internacional a aproximar-se dos seus objetivos de classe. Pelo contrário, uma vez que a Rússia se faz designar como um Estado socialista, ela engana os trabalhadores do mundo inteiro. O operário consciente sabe o que é o fascismo, e combate-o; mas no que respeita à Rússia, ele está demasiado inclinado aceitar o mito da sua natureza socialista. Esta ilusão retarda a ruptura completa e resoluta com o fascismo, porque entrava a luta principal contra as causas, as condições e as circunstâncias que - na Rússia como na Alemanha e em Itália - conduziram ao mesmo sistema de Estado e governo. Assim, o mito russo transforma-se em arma ideológica da contrarrevolução.
Ninguém pode servir dois senhores. Um Estado totalitário também não. Se o fascismo serve os interesses do capitalismo e do imperialismo, ele não pode satisfazer as necessidades dos trabalhadores. Se, a despeito de tudo isso, duas classes opostas aparentemente sustentam o mesmo sistema de Estado, é evidente que qualquer coisa não está bem e uma delas se engana. Ninguém pode, reduzindo o problema a uma simples questão de forma, pretender que ele não seja importante e que, ainda que por vezes as suas formas políticas sejam diferentes, os seus conteúdos podem variar consideravelmente. Isto conduzirá a uma automistificação. Para um marxista, as coisas não se passam assim; a forma e o conteúdo são indissociáveis. Portanto, se o Estado soviético serve de modelo ao fascismo, deve conter características estruturais e funcionais comuns. Para determinar quais, é-nos preciso regressar à análise do "sistema soviético", tal como foi inspirado pelo leninismo, que é a aplicação dos princípios bolcheviques às condições russas. E se se pode estabelecer uma identidade entre o bolchevismo e o fascismo, então o proletariado não pode ao mesmo tempo combater o fascismo e apoiar o "sistema soviético" russo. Pelo contrário, o combate contra o fascismo deve começar pelo combate ao bolchevismo.
II
Desde o princípio, Lênin concebia o bolchevismo como um fenómeno puramente russo. Ao longo dos seus numerosos anos de atividade política, ele nunca tentou içar o sistema bolchevique ao nível das formas de luta utilizadas nos outros países. Era um social-democrata, para quem Bebel e Kautsky continuavam os líderes geniais da classe operária, e ele ignorava a ala esquerda do movimento socialista alemão que se opunha precisamente aos heróis de Lênin e a todos os oportunistas. Ignorando esta esquerda, ele continuou, pois, isolado, rodeado por um pequeno grupo de emigrados russos, e manteve-se sob a influência de Kautsky, ainda quando a "esquerda" alemã, dirigida por Rosa Luxemburgo, já estava lançada na luta aberta contra o Kautskismo.
A Rússia era a única preocupação de Lênin. O seu objetivo era acabar com o sistema feudal czarista e conquistar o máximo de influência política para o seu partido social-democrata no quadro da revolução burguesa. Contudo a força da Revolução de 1917 conduziu Lênin muito para lá dos seus objetivos presumidos, e o partido bolchevique alcançou o poder em toda a Rússia. Contudo, esse partido sabia que não podia continuar no poder e fazer avançar o processo de socialização sem desencadear a revolução proletária mundial. Mas a sua atuação nesse domínio teve resultados infelizes. Contribuindo para remeter os operários alemães aos partidos, sindicatos, parlamento, e destruir o movimento dos conselhos alemães, os bolcheviques prestaram um grande auxílio ao esmagamento da revolução europeia nascente.
O partido bolchevique, formado por revolucionários profissionais e largas massas atrasadas, continuava isolado. Não podia desenvolver um verdadeiro sistema soviético durante os anos da guerra civil, intervenções estrangeiras, declínio económico, fracassos nas tentativas de socialização e constituição de um Exército Vermelho improvisado.
Ainda que os sovietes, desenvolvidos pelos mencheviques, sejam estranhos ao esquema bolchevique, foi, contudo, graças a eles que estes chegaram ao poder. Uma vez assegurada a estabilização do poder, e iniciado o processo de reconstrução económica, o partido bolchevique não sabia já como coordenar o sistema de sovietes, que não era o seu, com as suas próprias atividades e decisões. Contudo, realizar o socialismo era também o desejo dos bolcheviques, e isso necessitava da intervenção do proletariado mundial.
Para Lênin, era essencial ganhar os proletários do mundo para os métodos bolcheviques. Era na verdade muito incómodo constatar que os operários dos outros países, a despeito do grande triunfo obtido pelos bolcheviques, se mostravam pouco inclinados a aceitar a sua teoria e prática, mas eram muito mais atraídos pelo movimento dos conselhos, que apareciam então em muitos países e particularmente na Alemanha.
Esse movimento dos conselhos já não tinha qualquer utilidade para Lênin, na Rússia. Em outros países europeus, manifestava-se uma tendência nítida de oposição a levantamentos do tipo bolchevique. A despeito da enorme propaganda desenvolvida por Moscou em todos os países, a agitação conduzida pelo que se chama a ultraesquerda para uma revolução baseada no movimento dos conselhos despertou, tal como Lênin o sublinhou, um eco bem maior de todos os propagandistas enviados pelo partido bolchevique. O Partido Comunista Alemão, seguindo o exemplo do bolchevismo, continuava um pequeno grupo histérico e barulhento, formado, principalmente por elementos proletarizados da burguesia, enquanto que o movimento dos conselhos atraía os elementos mais determinados da classe operária. Para fazer face a esta situação, era preciso reforçar a propaganda bolchevique, era preciso atacar a "ultraesquerda" e modificar a sua influência a favor do bolchevismo.
Uma vez que o sistema dos sovietes tinha falhado na Rússia, podia, como a "concorrência" radical, ousar tentar provar ao mundo que aquilo em que o bolchevismo tinha falhado, na Rússia, se podia obter noutro local, sem necessidade dele? Para se defender, Lênin escreveu o seu panfleto "O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo", ditado pelo medo de perder o poder e pela indignação perante o sucesso dos histéricos. O panfleto apareceu inicialmente sob o título "Ensaio de Exposição Popular da Estratégia e Táctica Marxistas", mas depois esta frase ambiciosa e idiota foi suprimida. Era demais. Esta bula papal, agressiva, grosseira e odiosa, era uma verdadeira benção para qualquer contrarrevolucionário. De todas as declarações programáticas do bolchevismo esta é a que revela melhor o seu carácter real. É o bolchevismo posto a nu. Quando em 1935, Hitler suprimiu, em toda a Alemanha, toda a literatura comunista e socialista, a publicação e a difusão do panfleto de Lênin continuaram autorizadas.
No que respeita ao conteúdo do panfleto, não nos interessamos aqui sobre o que diz a propósito da Revolução russa, a história do bolchevismo e as outras correntes do movimento operário, ou as circunstâncias que permitiram a vitória do bolchevismo. O nosso único propósito será de analisar os argumentos principais que, na época da controvérsia entre Lênin e a "ultraesquerda", ilustravam as diferenças decisivas entre os dois adversários.
III
O partido bolchevique, originalmente secção social-democrata russa da II Internacional, constitui-se não na Rússia, mas na emigração. Depois da cisão de Londres, em 1903, a ala bolchevique da social-democracia russa reduziu-se a uma seita secreta. As "massas que a apoiavam apenas existiam no cérebro dos seus chefes. Contudo, esta pequena elite era uma organização estritamente disciplinada, sempre pronta para as lutas militantes, e submetida a purgas contínuas para manter a sua integridade. O partido era necessário como a academia militar dos revolucionários profissionais. Os seus princípios pedagógicos marcantes eram a autoridade indiscutida do chefe, um centralismo rígido, uma disciplina de ferro, o conformismo, o militarismo e o sacrifício da personalidade aos interesses do Partido. O que Lênin desenvolvia na realidade era uma elite de intelectuais, um núcleo que, lançado na revolução, tomaria a direção e se encarregaria do poder. É inútil procurar determinar lógica e abstratamente se uma tal preparação para a revolução é justa ou errada. O problema deve resolver-se dialeticamente. É preciso levantar para já outras questões: que espécie de revolução estava em gestação? Qual era o seu objetivo?
O partido de Lênin trabalhava, no quadro da tardia revolução burguesa russa, no derrube do regime feudal czarista. Nesse tipo de revolução, quanto mais a vontade do partido dirigente é centralizada e orientada para um único objetivo, tanto mais o processo de formação do Estado será prometedor. Contudo, o que se pode considerar como uma feliz solução dos problemas revolucionários numa revolução burguesa não pode passar ao mesmo tempo pela solução dos problemas da revolução proletária. A diferença estrutural entre a sociedade burguesa e a nova sociedade socialista exclui uma tal ambivalência.
Segundo o método revolucionário de Lênin, os chefes são o cérebro das massas. Possuindo a educação revolucionária apropriada, são ainda capazes de apreciar as situações e comandar as forças combatentes. Eles são revolucionários profissionais, os generais do grande exército civil. Esta distinção entre o cérebro e o corpo, entre os intelectuais e as massas, os oficiais e os simples soldados, corresponde à dualidade da sociedade de classe, à ordem social burguesa. Uma classe é treinada para comandar, a outra para obedecer. É a velha forma de classe de que saiu a concepção leninista do partido. A sua organização é apenas uma simples réplica da realidade burguesa. A sua revolução é objetivamente determinada pelas mesmas forças que criam a ordem social burguesa, abstração feita dos objetivos que acompanham esse processo.
Quem quer que procure estabelecer um regime burguês, encontrará, no princípio da separação entre o chefe e as massas, entre a elite e a classe operária, a preparação estratégica de uma tal revolução. Quanto mais a direção é inteligente, instruída e superior, mais as massas são disciplinadas e obedientes, e também mais uma tal revolução tem possibilidades de vencer. Procurando fazer a revolução burguesa na Rússia, o partido de Lênin estava, pois, completamente adaptado ao seu objetivo. Quando, contudo, a revolução russa mudou de natureza, quando as suas características proletárias se tornaram evidentes, os métodos tácticos e estratégicos de Lênin perderam o seu valor. Se ele levou a sua avante não foi por causa da sua elite, mas sim do movimento dos sovietes que ele não tinha incluído nos seus planos revolucionários. E quando Lênin, uma vez assegurado pelos sovietes o triunfo da revolução, decidiu uma vez mais livrar-se deles, com eles todos os caracteres proletários da revolução desapareceram. O caráter burguês da revolução ocupou de novo a cena, encontrando a sua conclusão natural no stalinismo.
A despeito da sua preocupação da dialética marxista, Lênin era incapaz de conceber dialeticamente a evolução histórica dos processos sociais. O seu pensamento continuava mecanicista, seguindo regras rígidas. Para ele, apenas existia um único partido revolucionário - o seu; uma única revolução - a revolução Russa; um único método - o bolchevismo. E o que tinha obtido sucesso na Rússia, devia obtê-lo também na Alemanha, França, América, China e Austrália. O que era correto para a revolução burguesa russa, sê-lo-ia também para a revolução proletária mundial. A aplicação monótona de uma fórmula, descoberta uma vez por todas, evoluía num círculo egocêntrico onde não entravam em consideração nem a época, as circunstâncias ou os níveis de desenvolvimento, realidades culturais, ideias ou homens. Com Lênin, era o advento do maquinismo em política[1*]; ele era "técnico" o "inventor" da revolução, o representante da vontade todo-poderosa do chefe. Todas as características fundamentais do fascismo existiam na sua doutrina, estratégia, "planificação social" e arte de manejar os homens. Ele não podia perceber a profunda significação revolucionária da rejeição pela esquerda da política tradicional do partido. Não podia compreender a verdadeira importância do movimento dos sovietes para a orientação socialista da sociedade. Ignorava as condições requeridas pela libertação dos operários. Autoridade, direção, força, exercidas de um lado, organização, do outro - tal era a sua maneira de raciocinar. Disciplina e ditadura são as palavras que surgem mais frequentemente nos seus escritos. Compreende-se, pois, facilmente, porque não podia aceitar ou apreciar as ideias e ações da "ultraesquerda", que recusava a sua estratégia e reclamava o que, evidentemente, era indispensável na luta revolucionária para o socialismo - a saber, que os operários tomassem uma vez por todas a sua sorte em mãos.
IV
A apropriação pelos operários da sua própria libertação - problema central do socialismo -, era o objetivo fundamental de todas as polémicas entre os ultraesquerda e os bolcheviques. O desacordo sobre a questão do partido encontrava o seu paralelo no descordo sobre os sindicatos. A ultraesquerda pensava que já não havia lugar para os revolucionários no seio dos sindicatos, que era, pelo contrário, necessário construírem os seus próprios quadros organizacionais no interior das fábricas, lugares de trabalho comuns[2*]. Contudo, graças à sua autoridade usurpada, os bolcheviques tinham conseguido, desde as primeiras semanas da revolução alemã, convencer os operários a regressarem aos sindicatos capitalistas reacionários. Para atacar os ultraesquerda, para os denunciar como contrarrevolucionários, Lênin utiliza, uma vez mais, no seu panfleto as suas fórmulas mecanicistas. A sua argumentação contra a posição da esquerda não se refere aos sindicatos alemães, mas às experiências sindicais dos bolcheviques na Rússia. É geralmente admitido que nos seus princípios, os sindicatos tiveram uma função importante na luta da classe operária. Os sindicatos na Rússia eram muito jovens e justificavam o entusiasmo de Lênin. Contudo, a situação era muito diferente nos outros países. De úteis e progressistas nos primeiros dias, os sindicatos tinham-se transformado nos velhos países capitalistas em obstáculos à libertação dos operários. Tinham-se tornado instrumentos da contrarrevolução, e a esquerda alemã tinha tirado conclusões desta evolução.
O próprio Lênin viu-se obrigado a constatar que com o tempo se tinha constituído uma camada "de aristocracia operária exclusivamente corporativista, arrogante, suporte do imperialismo, pequeno-burguesa, corrupta e degenerada". É esta guilda da corrupção, esta direção de bandidos que está hoje à cabeça do movimento sindicalista no mundo e vive nas costas dos trabalhadores. Era a esse movimento sindical que a ultraesquerda se referia quando pedia aos trabalhadores para o abandonarem. Lênin, contudo, avançava demagogicamente o exemplo do jovem movimento sindical russo o qual não partilhava as características dos velhos sindicatos dos outros países. A partir de uma experiência específica, correspondendo ao um período dado e a circunstâncias particulares, ele achava possível tirar conclusões aplicáveis à escala mundial. A partir da sua argumentação, o revolucionário deve sempre estar onde se encontram as massas. Mas onde estão elas realmente? Nos escritórios dos sindicatos? Nas reuniões de aderentes? Nos encontros secretos entre dirigentes sindicais e representantes do Capital? Não, as massas estão nas fábricas, nos seus locais de trabalho, e é lá que é necessário tornar eficaz a sua cooperação e reforçar a sua solidariedade. A organização da fábrica, o sistema dos conselhos, tal é a organização autêntica da revolução, que deve substituir todos os partidos e sindicatos.
Nas organizações de fábrica não há lugar para os profissionais de direção; já não há separação entre chefes e subordinados, distinção entre intelectuais e simples militantes. É um quadro que desencoraja as manifestações de egoísmo, o espírito de rivalidade, a corrupção e o filistinismo. É aí que os operários devem tomar conta dos seus assuntos.
Mas para Lênin, tudo era diferente. Ele queria manter os sindicatos; transformá-los a partir do interior, substituir os funcionários social-democratas por outros, comunistas; substituir uma má burocracia por uma boa. A má satisfazia-se na social-democracia, a boa no bolchevismo. Entretanto vinte anos de experiência demonstraram a inanidade de uma tal concepção. Seguindo os conselhos de Lênin, os comunistas tentaram todos os métodos possíveis para reformar os sindicatos. O resultado foi nulo. Nula igualmente a sua tentativa para constituir os seus próprios sindicatos. A concorrência sindical entre social-democratas e bolcheviques eram uma concorrência na corrupção. Nesse mesmo processo, as energias revolucionárias dos operários consumiram-se em lugar de concentrarem as suas forças para lutarem contra o fascismo, os operários pagaram o custo de uma experiência absurda e vã para proveito de diversas burocracias. As massas perderam a confiança em si próprias, e nas "suas" organizações. Sentiram-se enganadas. Os métodos típicos do fascismo: ditar cada passo aos operários, impedir o despertar da iniciativa, sabotar todo o embrião de consciência de classe, desmoralizar as massas por derrotas sucessivas, e torná-las impotentes, todos esses métodos já tinham sido provados ao longo dos vinte anos de trabalho executado nos sindicatos segundo os princípios bolcheviques. A vitória do fascismo foi tanto mais fácil quanto os dirigentes operários nos sindicatos e nos partidos tinham já modelado para ele o material humano capaz de se adaptar ao seu molde.
V
Sobre a questão do parlamentarismo, Lênin aparecia igualmente como defensor de uma instituição política ultrapassada, tornada obstáculo da evolução política e um perigo para a emancipação proletária, os ultraesquerda combatiam o parlamentarismo sob todas as suas formas. Recusavam participar nas eleições e não respeitavam as decisões parlamentares. Lênin, contudo, consagrava muitas energias à atividade parlamentar e atribuía-lhe grande importância. A ultraesquerda declarava o parlamentarismo historicamente ultrapassado, mesmo como simples tribuna de agitação, e não via nele senão uma perpétua fonte de corrupção tanto para os parlamentares como para os operários. O parlamentarismo adormecia a consciência revolucionária e a determinação das massas, veiculando ilusões de reformas legais. Nos momentos críticos, o parlamento transformava-se numa arma da contrarrevolução. Era preciso destruí-lo ou, melhor ou pior, sabotá-lo. Era preciso combater a tradição parlamentar na medida que ela tinha ainda uma função na tomada de consciência proletária. Para provar o contrário, Lênin criou uma astuciosa distinção entre as instituições ultrapassadas historicamente e as instituições ultrapassadas politicamente. Seguramente, o parlamentarismo, argumentava ele está ultrapassado historicamente, mas não politicamente, e por isso é um facto com que é preciso contar. É preciso participar no parlamento porque ele tem ainda uma função política. Que argumento! O capitalismo, também ele, apenas está ultrapassado historicamente. Segundo a lógica de Lênin, não é, pois, possível combatê-lo de uma maneira revolucionária. Convirá muito mais encontrar um compromisso. O oportunismo, a traficância, o manobrismo político - tais seriam as consequências da táctica de Lênin. A monarquia, também ela, tem ainda uma função política. Segundo Lênin, os operários não teriam o direito de a suprimir mas deveriam elaborar uma solução de compromisso. O mesmo seria para a Igreja, à qual, aliás, pertencem largas camadas do povo. Um revolucionário, insistia Lênin, deve estar onde estão as massas. A coerência obrigá-lo-ia, pois, a dizer: "Entrem na Igreja pois esse é o vosso dever revolucionário". E, enfim, há o fascismo. Um dia virá em que também o fascismo será um anacronismo histórico, mas não político. Que fazer então? Aceitar a evidência e concluir um compromisso com o fascismo. Segundo o raciocínio de Lênin, um pacto entre Stálin e Hitler provaria somente que Stálin é, na realidade, o melhor discípulo de Lênin. E não seria absolutamente surpreendente que num futuro próximo, os agentes bolcheviques glorifiquem o pacto entre Moscovo e Berlim como a única táctica revolucionária.
A posição de Lênin sobre a questão do parlamentarismo apenas é uma prova suplementar da sua incapacidade para compreender as necessidades e características fundamentais da revolução proletária. A sua revolução é inteiramente burguesa; trata-se de uma luta para conquistar a maioria, para assegurar as posições governamentais e colocar a mão sobre o aparelho legislativo. Ele julgava realmente importante ganhar tantos votos quanto possível quando das campanhas eleitorais, ter uma importante fracção bolchevique nos parlamentos, contribuir para determinar a forma e o conteúdo da legislação, participar na direção política. Não notava que nos nossos dias o parlamentarismo não passa de um simples "bluff", uma ilusão de óptica, e que o verdadeiro poder da sociedade burguesa se situa em esferas completamente diferentes; que, a despeito de todas as derrotas parlamentares possíveis, a burguesia deterá ainda meios suficientes para impor a sua vontade e interesses nos sectores não parlamentares. Lênin não via os efeitos desmoralizantes do parlamentarismo sobre a massas, não notava o efeito debilitante da corrupção parlamentar sobre a moral pública. Os políticos parlamentares corrompidos receavam pelo seu futuro. Houve uma época, na Alemanha pré-fascista, em que os reacionários podiam fazer passar no Parlamento não importa que lei ameaçando simplesmente provocar a sua dissolução. Que ameaça mais terrível para os parlamentares que implicava o fim dos seus rendimentos fáceis! Para evitar isso, eles estavam prontos a tudo. E será diferente hoje na Alemanha, Rússia e Itália? Os fantoches parlamentares não têm qualquer opinião, qualquer vontade, eles não passam de servidores dos seus patrões fascistas. Não há dúvida que o parlamentarismo está inteiramente degenerado e corrompido. Mas porque é que o proletariado não pôs fim à deterioração de um instrumento político que antes tinha utilizado para os seus fins? Suprimir o parlamentarismo por um ato de heroísmo revolucionário teria sido muito mais útil e instrutivo para a tomada de consciência proletária que não o é a miserável comédia a que chegou o parlamentarismo na sociedade fascista. Mas uma tal atitude era basicamente estranha a Lênin, como o é hoje a Stálin. O cuidado de Lênin não era libertar os operários da sua escravidão mental e física. Ele não estava preocupado com a falsa consciência das massas nem com a sua autoalienação enquanto seres humanos. O problema, para ele, resumia-se a um problema de poder. Como um burguês, ele pensava em termos de ganhos e perdas, de mais e menos, crédito e débito; e todas as suas evoluções de homem de negócios apenas diziam respeito a fenómenos externos: número de aderentes, número de votos, lugares nos parlamentos, postos de direção. O seu materialismo é um materialismo burguês, raciocinando sobre mecanismos e não sobre seres humanos. Lênin não é capaz de pensar realmente em termos sócio-históricos. Para ele, o parlamento é o parlamento: um conceito abstrato no vazio, revestindo o mesmo significado em todos os países e épocas. Certamente, ele reconhecia que o parlamentarismo atravessa diversas fases evolutivas, e assinala-o na sua argumentação, mas não aplica esta constatação nem na sua teoria nem na sua prática. Nas suas polémicas a favor do parlamentarismo, brande o exemplo dos primeiros parlamentos do período ascendente do capitalismo, para não ficar sem argumentos. E ataca os parlamentos degenerados, fá-lo do ponto de vista dos parlamentos de criação recente, contudo ultrapassados desde há muito tempo. Em resumo, decide que a política é a arte do possível, embora para os operários a política é a arte da revolução.
VI
Resta analisar a posição de Lênin sobre a questão dos compromissos. Durante a Guerra Mundial, a social-democracia alemã vendeu-se à burguesia. Contudo, a despeito dela, era herdeira da revolução alemã. Isso foi possível, numa larga medida, graças à Rússia que teve a sua parte de responsabilidade na eliminação do movimento alemão dos conselhos. O poder que tinha caído nos braços da social-democracia foi desperdiçado em pura perda. A social-democracia limitou-se a renunciar através da sua velha política de colaboração de classes, satisfeita em partilhar o poder com a burguesia nas costas dos trabalhadores durante o período de reconstrução do capitalismo. Os operários radicais alemães opuseram a esta traição o "slogan": "Não aos compromissos com a contrarrevolução". Tratava-se aí de um caso concreto, de uma situação específica, que indicava uma decisão parcelar. Lênin, incapaz de reconhecer os verdadeiros problemas, fez desta questão concreta um problema abstrato. Com os ares de um general e a infalibilidade de um cardeal, tentou convencer os ultraesquerda que os compromissos com os adversários políticos são, em todas as circunstâncias, um dever revolucionário. Lendo hoje as passagens do panfleto de Lênin que tratam dos compromissos, não se pode deixar de aproximar as observações feitas por Lênin em 1920 e a atual política de compromisso conduzida por Stálin. Não há um único defeito mortal da teoria bolchevique que se não tenha tornado realidade sob Stálin. Segundo Lênin, os ultraesquerda deveriam ter assinado o Tratado de Versalhes. Contudo o partido comunista, sempre de acordo com Lênin, concluiu um compromisso com os hitlerianos e protestou a seu lado contra esse mesmo tratado. O "nacional-bolchevismo", pregado na Alemanha pelo oposicionista de Laufenberg. Em 1919, foi criticado por Lênin, como um "absurdo gritante"[3*]. Mas Radek e o partido comunista, seguindo sempre os princípios de Lênin, concluíram um compromisso com o nacionalismo alemão, protestaram contra a ocupação da bacia do Ruhr e celebraram o herói nacional Schlageter[4*]. A SDN era, para retomar os termos de Lênin, "um bando de ladrões capitalistas e bandidos" que os operários deviam combater com a máxima energia. Contudo, Stálin, seguindo a táctica de Lênin elaborou um compromisso com esses mesmos bandidos e a URSS entrou na SDN. O conceito de "povo" (Folk) é para Lênin uma concessão criminosa feita à ideologia contrarrevolucionária de pequena-burguesia. Isso não impede os leninistas Stálin e Dimitrov de realizarem um compromisso coma a pequena-burguesia para lançar o movimento idiota das "Frentes Populares". Aos olhos de Lênin, o imperialismo era o maior inimigo do proletariado mundial, e contra ele era preciso mobilizar todas as forças. Mas Stálin, como perfeito leninista, uma vez mais, está muito ocupado a tramar uma aliança com o imperialismo hitleriano. Será preciso mais exemplos mais exemplos? A experiência histórica ensina-nos que todos os compromissos feitos entre a revolução e a contrarrevolução apenas podem trazer proveito a esta última. Toda a política de compromisso é uma política de bancarrota para o movimento revolucionário. O que tinha começado como um simples compromisso com a social-democracia alemã, conduziu a Hitler. O que Lênin justificava como um compromisso necessário conduziu a Stálin. Diagnosticando como "doença infantil do comunismo" a recusa revolucionária dos compromissos, Lênin sofria da doença senil do oportunismo, o pseudocomunismo.
VII
Analisada de um ponto de vista crítico, a descrição do bolchevismo traçada no panfleto de Lênin apresenta as seguintes características principais:
1.             O bolchevismo é uma doutrina nacionalista. Concebido na origem, essencialmente para resolver um problema nacional, ela viu-se mais tarde elevada ao nível de uma teoria e uma prática de alcance internacional, e de uma doutrina geral. O seu carácter nacionalista é também posto em evidência pelo seu apoio às lutas de independência nacional levadas a cabo por povos colonizados.
2.             O bolchevismo é um sistema autoritário. O cume da pirâmide social é o centro de decisão determinante. A autoridade é encarnada na pessoa todo-poderosa. No mito do chefe, o ideal burguês da personalidade encontra a sua mais perfeita expressão.
3.             Organizacionalmente, o bolchevismo é altamente centralizado. O comité central detém a responsabilidade de toda a iniciativa, instrução ou ordem. Os dirigentes da organização têm a função da burguesia; a única função dos operários é a de obedecer às ordens.
4.             O bolchevismo é uma concepção ativista do poder. Pensado exclusivamente como a conquista do poder político, não se diferencia das formas de dominação burguesas tradicionais. Mesmo no seio da organização, os membros não gozam de autodeterminação. O exército serve ao Partido como modelo de organização.
5.             O bolchevismo é uma ditadura. Utilizando a força brutal e métodos terroristas, orienta todas as funções em direção à eliminação das instituições e correntes de opinião não bolcheviques. A sua "ditadura do proletariado" é uma ditadura de uma burocracia ou de uma única pessoa.
6.             O bolchevismo é um método mecanicista. A ordem social que visa é fundada na coordenação automática, a conformidade obtida pela técnica e o totalitarismo mais eficazes. A economia centralmente "planificada" reduz estreitamente as questões socioeconômicas a problemas técnico-organizacionais.
7.             A estrutura social do bolchevismo é de natureza burguesa. Ele não elimina absolutamente o sistema de salariato e recusa a apropriação pelo proletariado dos produtos do seu trabalho. Fazendo-o, continua e fundamentalmente no quadro das relações de classe burguesas, e perpétua o capitalismo.
8.             O bolchevismo apenas é um elemento revolucionário no quadro de uma revolução burguesa. Incapaz de realizar o sistema soviético, ele é, por isso mesmo, incapaz de transformar radicalmente a estrutura da sociedade burguesa e a sua economia. Não é o socialismo que instaura, mas sim o capitalismo de Estado.
9.             O bolchevismo não é uma etapa de transição que provocaria posteriormente a sociedade socialista. Sem o sistema dos sovietes, sem a revolução radical e total dos homens e das coisas, não pode preencher a exigência socialista primordial, que é a de pôr termo à alienação humana engendrada pelo capitalismo. Ele representa a última etapa da sociedade burguesa, e não o primeiro passo em direção a uma nova sociedade.
Estes nove pontos demonstram uma oposição irreconciliável entre o bolchevismo e o socialismo. Eles ilustram, com toda a clareza necessária, o carácter burguês do movimento bolchevique e o seu parentesco próximo com o fascismo. Nacionalismo, autoritarismo, centralismo, direção do chefe, política do poder, reino do terror, dinâmicas mecanicistas, incapacidade de socializar - todos esses traços fundamentais do fascismo existiam e existem no bolchevismo. O fascismo não passa de uma simples cópia do bolchevismo. Por esta razão, a luta contra o fascismo deve começar pela luta contra o bolchevismo.

Notas:

[1*] Stálin proclamava Lênin "o genial mecânico da locomotiva da história". Encontram-se múltiplos exemplos desta concepção mecanicista na prosa bolchevique, e em todos os domínios.
[2*] Sobre a política dos ultraesquerda no que respeita aos sindicatos e o parlamento, ver: Pannekoek et les Conseils Ouvriers, H. Gorter, Réponse à Lênin.
[3*] Laufenberg (1872-1932). Um dos organizadores da oposição de extrema-esquerda em Hamburgo. Laufenberg e Wolfheim tinham pregado desde outubro de 1918 "a tese da necessária transformação da revolução em guerra revolucionária popular contra os imperialistas da Aliança, unidos com a Rússia soviética" Cf. Pierre Broué, Revolução na Alemanha, Ed. de Minuit, 1971.
[4*] O nacionalista Schlageter tinha sido fuzilado pelas tropas francesas quando da ocupação do Ruhr. Deu o seu nome à campanha dirigida pelo KPD para atrair elementos nacionalistas pequeno-burgueses influenciados pela propaganda fascista.

Living Marxism, Vol. 4, n.º 8 - Setembro de 1939
Fonte: http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1188/grupos_comunistasde_conselhos.

sábado, 4 de agosto de 2018

O Marxismo Vivo de Nildo Viana, publicação dos comunistas de conselhos da Galiza



LANÇAMENTO - Disponível na loja virtual:www.rizomaeditorial.com - SUPER PROMOÇÃO DE LANÇAMENTO: R$ 18,00 - 

Nildo Viana: Um Marxismo Vivo - comunistas de conselhos / Galiza (Orgs.). 

O marxismo foi petrificado. Rosa Luxemburgo, já em 1903, escrevia sobre a “estagnação do marxismo”. Após a morte de Marx há o desenvolvimento do pseudomarxismo, ou seja, um conjunto de grupos, indivíduos, intelectuais, que se dizem “marxistas”, mas que não expressam a perspectiva do proletariado revolucionário e por isso entram em contradição com as ideias daqueles que fazem isso, a começar pelo próprio Marx. A compilação de textos de Nildo Viana, realizada pelos Comunistas de Conselhos da Galiza/Espanha, recebe o título de “Marxismo Vivo”, justamente por se opor ao “marxismo morto” dos pseudomarxistas. Um marxismo vivo é revolucionário. Uma revolução no pensamento que aponta para uma revolução proletária, uma revolução social que promove a superação radical e total da totalidade das relações sociais que formam a decrépita sociedade capitalista. §§§ Brochura com 104 páginas, no formato 14X21cm;

Comunistas de conselhos da Galiza/Espanha. Nildo Viana: Um Marxismo Vivo. Rio de Janeiro: Rizoma, 2018.

Para adquirir:
http://rizomaeditorial.com/store/index.php?route=product%2Fproduct&product_id=595&search=nildo+viana


domingo, 5 de novembro de 2017

A LUTA CONTRA O FASCISMO COMEÇA PELA LUTA CONTRA O BOLCHEVISMO

A LUTA CONTRA O FASCISMO COMEÇA PELA LUTA CONTRA O BOLCHEVISMO

Otto Rühle


É preciso colocar a Rússia na primeira linha dos novos Estados totalitários. Ela foi a primeira a adotar o novo princípio de Estado. Foi ela que levou mais longe a sua aplicação. Foi a primeira a estabelecer uma ditadura constitucional, com o sistema de terror político e administrativo que o acompanha. Adotando todas as características do Estado totalitário, tornou-se assim o modelo para todos os países constrangidos a renunciar ao sistema democrático para se voltarem para a ditadura. A Rússia serviu de exemplo ao fascismo.
Não se trata absolutamente de um acidente nem de uma brincadeira de mau gosto da história. A semelhança de sistemas, longe de ser apenas aparente, é aqui real. Tudo mostra que enfrentamos expressões e consequências de princípios idênticos aplicados a níveis diferentes de desenvolvimento histórico e político. Que isso agrade ou não aos partidos “comunistas”, o facto é que o Estado, como a maneira de governar na Rússia, em nada difere da Itália e da Alemanha. Eles são fundamentalmente semelhantes. Pode-se falar de um “Estado soviético” vermelho, negro ou castanho, assim como de um fascismo vermelho, negro ou castanho. Mesmo se existem entre países certas diferenças ideológicas, a ideologia nunca teve uma função determinante. Aliás, as ideologias são mutáveis, e tais mudanças não refletem forçosamente o carácter e as funções do aparelho de Estado. Por outro lado, a manutenção da propriedade privada na Alemanha e em Itália não passa de uma modificação secundária. A abolição da propriedade privada pode ser abolida no quadro do capitalismo. O que determina de facto uma sociedade socialista é, além da abolição da propriedade privada dos meios de produção, a gestão pelos operários dos produtos do seu trabalho, e o fim do salariato. Tanto na Rússia como na Itália estas condições não estão preenchidas. Se bem que, segundo alguns, a Rússia esteja mais próxima do socialismo que outros países, daí não se deduz que o “Estado soviético” tenha ajudado o proletariado internacional a aproximar-se dos seus objetivos de classe. Pelo contrário, uma vez que a Rússia se faz designar como um Estado socialista, ela engana os trabalhadores do mundo inteiro. O operário consciente sabe o que é o fascismo, e combate-o; mas no que respeita à Rússia, ele está demasiado inclinado aceitar o mito da sua natureza socialista. Esta ilusão retarda a ruptura completa e resoluta com o fascismo, porque entrava a luta principal contra as causas, as condições e as circunstâncias que - na Rússia como na Alemanha e em Itália - conduziram ao mesmo sistema de Estado e governo. Assim, o mito russo transforma-se em arma ideológica da contrarrevolução.
Ninguém pode servir dois senhores. Um Estado totalitário também não. Se o fascismo serve os interesses do capitalismo e do imperialismo, ele não pode satisfazer as necessidades dos trabalhadores. Se, a despeito de tudo isso, duas classes opostas aparentemente sustentam o mesmo sistema de Estado, é evidente que qualquer coisa não está bem e uma delas se engana. Ninguém pode, reduzindo o problema a uma simples questão de forma, pretender que ele não seja importante e que, ainda que por vezes as suas formas políticas sejam diferentes, os seus conteúdos podem variar consideravelmente. Isto conduzirá a uma automistificação. Para um marxista, as coisas não se passam assim; a forma e o conteúdo são indissociáveis. Portanto, se o Estado soviético serve de modelo ao fascismo, deve conter características estruturais e funcionais comuns. Para determinar quais, é preciso regressar à análise do “sistema soviético”, tal como foi inspirado pelo leninismo, que é a aplicação dos princípios bolcheviques às condições russas. E se se pode estabelecer uma identidade entre o bolchevismo e o fascismo, então o proletariado não pode ao mesmo tempo combater o fascismo e apoiar o “sistema soviético” russo. Pelo contrário, o combate contra o fascismo deve começar pelo combate ao bolchevismo.
II

Desde o princípio, Lênin concebia o bolchevismo como um fenómeno puramente russo. Ao longo dos seus numerosos anos de atividade política, ele nunca tentou içar o sistema bolchevique ao nível das formas de luta utilizadas nos outros países. Era um social-democrata, para quem Bebel e Kautsky continuavam os líderes geniais da classe operária, e ele ignorava a ala esquerda do movimento socialista alemão que se opunha precisamente aos heróis de Lênin e a todos os oportunistas. Ignorando esta esquerda, ele continuou, pois isolado, rodeado por um pequeno grupo de emigrados russos, e manteve-se sob a influência de Kautsky, ainda quando a “esquerda” alemã, dirigida por Rosa Luxemburgo, já estava lançada na luta aberta contra o Kautskismo.
A Rússia era a única preocupação de Lênin. O seu objetivo era acabar com o sistema feudal czarista e conquistar o máximo de influência política para o seu partido social-democrata no quadro da revolução burguesa. Contudo a força da Revolução de 1917 conduziu Lênin muito para lá dos seus objetivos presumidos, e o partido bolchevique alcançou o poder em toda a Rússia. Contudo, esse partido sabia que não podia continuar no poder e fazer avançar o processo de socialização sem desencadear a revolução proletária mundial. Mas a sua atuação nesse domínio teve resultados infelizes. Contribuindo para remeter os operários alemães aos partidos, sindicatos, parlamento, e destruir o movimento dos conselhos alemães, os bolcheviques prestaram um grande auxílio ao esmagamento da revolução europeia nascente.
O partido bolchevique, formado por revolucionários profissionais e largas massas atrasadas, continuava isolado. Não podia desenvolver um verdadeiro sistema soviético durante os anos da guerra civil, intervenções estrangeiras, declínio económico, fracassos nas tentativas de socialização e constituição de um Exército Vermelho improvisado.
Ainda que os sovietes, desenvolvidos pelos mencheviques, sejam estranhos ao esquema bolchevique, foi, contudo graças a eles que estes chegaram ao poder. Uma vez assegurada a estabilização do poder, e iniciado o processo de reconstrução económica, o partido bolchevique não sabia já como coordenar o sistema de sovietes, que não era o seu, com as suas próprias atividades e decisões. Contudo, realizar o socialismo era também o desejo dos bolcheviques, e isso necessitava da intervenção do proletariado mundial.
Para Lênin, era essencial ganhar os proletários do mundo para os métodos bolcheviques. Era na verdade muito incómodo constatar que os operários dos outros países, a despeito do grande triunfo obtido pelos bolcheviques, se mostravam pouco inclinados a aceitar a sua teoria e prática, mas eram muito mais atraídos pelo movimento dos conselhos, que apareciam então em muitos países e particularmente na Alemanha.
Esse movimento dos conselhos já não tinha qualquer utilidade para Lênin, na Rússia. Em outros países europeus, manifestava-se uma tendência nítida de oposição a levantamentos do tipo bolchevique. A despeito da enorme propaganda desenvolvida por Moscou em todos os países, a agitação conduzida pelo que se chama a ultraesquerda para uma revolução baseada no movimento dos conselhos despertou, tal como Lênin o sublinhou, um eco bem maior de todos os propagandistas enviados pelo partido bolchevique. O Partido Comunista Alemão, seguindo o exemplo do bolchevismo, continuava um pequeno grupo histérico e barulhento, formado, principalmente por elementos proletarizados da burguesia, enquanto que o movimento dos conselhos atraía os elementos mais determinados da classe operária. Para fazer face a esta situação, era preciso reforçar a propaganda bolchevique, era preciso atacar a “ultraesquerda” e modificar a sua influência a favor do bolchevismo.
Uma vez que o sistema dos sovietes tinha falhado na Rússia, podia, como a “concorrência” radical, ousar tentar provar ao mundo que aquilo em que o bolchevismo tinha falhado, na Rússia, se podia obter noutro local, sem necessidade dele? Para se defender, Lênin escreveu o seu panfleto “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”, ditado pelo medo de perder o poder e pela indignação perante o sucesso dos histéricos. O panfleto apareceu inicialmente sob o titulo “Ensaio de Exposição Popular da Estratégia e Táctica Marxistas”, mas depois esta frase ambiciosa e idiota foi suprimida. Era demais. Esta bula papal, agressiva, grosseira e odiosa, era uma verdadeira benção para qualquer contrarrevolucionário. De todas as declarações programáticas do bolchevismo esta é a que revela melhor o seu carácter real. É o bolchevismo posto a nu. Quando em 1935, Hitler suprimiu, em toda a Alemanha, toda a literatura comunista e socialista, a publicação e a difusão do panfleto de Lênin continuaram autorizadas.
No que respeita ao conteúdo do panfleto, não nos interessamos aqui sobre o que diz a propósito da Revolução russa, a história do bolchevismo e as outras correntes do movimento operário, ou as circunstâncias que permitiram a vitória do bolchevismo. O nosso único propósito será de analisar os argumentos principais que, na época da controvérsia entre Lênin e a “ultraesquerda”, ilustravam as diferenças decisivas entre os dois adversários.
III

O partido bolchevique, originalmente secção social-democrata russa da II Internacional, constitui-se não na Rússia, mas na emigração. Depois da cisão de Londres, em 1903, a ala bolchevique da social-democracia russa reduziu-se a uma seita secreta. As “massas que a apoiavam apenas existiam no cérebro dos seus chefes. Contudo, esta pequena elite era uma organização estritamente disciplinada, sempre pronta para as lutas militantes, e submetida a purgas contínuas para manter a sua integridade. O partido era necessário como a academia militar dos revolucionários profissionais. Os seus princípios pedagógicos marcantes eram a autoridade indiscutida do chefe, um centralismo rígido, uma disciplina de ferro, o conformismo, o militarismo e o sacrifício da personalidade aos interesses do Partido. O que Lênin desenvolvia na realidade era uma elite de intelectuais, um núcleo que, lançado na revolução, tomaria a direção e se encarregaria do poder. É inútil procurar determinar lógica e abstratamente se uma tal preparação para a revolução é justa ou errada. O problema deve resolver-se dialeticamente. É preciso levantar para já outras questões: que espécie de revolução estava em gestação? Qual era o seu objetivo?
O partido de Lênin trabalhava, no quadro da tardia revolução burguesa russa, no derrube do regime feudal czarista. Nesse tipo de revolução, quanto mais a vontade do partido dirigente é centralizada e orientada para um único objetivo, tanto mais o processo de formação do Estado será prometedora. Contudo, o que se pode considerar como uma feliz solução dos problemas revolucionários numa revolução burguesa não pode passar ao mesmo tempo pela solução dos problemas da revolução proletária. A diferença estrutural entre a sociedade burguesa e a nova sociedade socialista exclui uma tal ambivalência.
Segundo o método revolucionário de Lênin, os chefes são o cérebro das massas. Possuindo a educação revolucionária apropriada, são ainda capazes de apreciar as situações e comandar as forças combatentes. Eles são revolucionários profissionais, os generais do grande exército civil. Esta distinção entre o cérebro e o corpo, entre os intelectuais e as massas, os oficiais e os simples soldados, corresponde à dualidade da sociedade de classe, à ordem social burguesa. Uma classe é treinada para comandar, a outra para obedecer. É a velha forma de classe de que saiu a concepção leninista do partido. A sua organização é apenas uma simples réplica da realidade burguesa. A sua revolução é objetivamente determinada pelas mesmas forças que criam a ordem social burguesa, abstração feita dos objetivos que acompanham esse processo.
Quem quer que procure estabelecer um regime burguês, encontrará, no princípio da separação entre o chefe e as massas, entre a elite e a classe operária, a preparação estratégica de uma tal revolução. Quanto mais a direção é inteligente, instruída e superior, mais as massas são disciplinadas e obedientes, e também mais uma tal revolução tem possibilidades de vencer. Procurando fazer a revolução burguesa na Rússia, o partido de Lênin estava, pois completamente adaptado ao seu objetivo. Quando, contudo, a revolução russa mudou de natureza, quando as suas características proletárias se tornaram evidentes, os métodos tácticos e estratégicos de Lênin perderam o seu valor. Se ele levou a sua avante não foi por causa da sua elite, mas sim do movimento dos sovietes que ele não tinha incluído nos seus planos revolucionários. E quando Lênin, uma vez assegurado pelos sovietes o triunfo da revolução, decidiu uma vez mais livrar-se deles, com eles todos os caracteres proletários da revolução desapareceram. O caráter burguês da revolução ocupou de novo a cena, encontrando a sua conclusão natural no estalinismo.
A despeito da sua preocupação da dialética marxista, Lênin era incapaz de conceber dialeticamente a evolução histórica dos processos sociais. O seu pensamento continuava mecanicista, seguindo regras rígidas. Para ele, apenas existia um único partido revolucionário - o seu; uma única revolução - a revolução Russa; um único método - o bolchevismo. E o que tinha obtido sucesso na Rússia, devia obtê-lo também na Alemanha, França, América, China e Austrália. O que era correto para a revolução burguesa russa, sê-lo-ia também para a revolução proletária mundial. A aplicação monótona de uma fórmula, descoberta uma vez por todas, evoluía num círculo egocêntrico onde não entravam em consideração nem a época, as circunstâncias ou os níveis de desenvolvimento, realidades culturais, ideias ou homens. Com Lênin, era o advento do maquinismo em política; ele era “técnico” o “inventor” da revolução, o representante da vontade todo-poderosa do chefe. Todas as características fundamentais do fascismo existiam na sua doutrina, estratégia, “planificação social” e arte de manejar os homens. Ele não podia perceber a profunda significação revolucionária da rejeição pela esquerda da política tradicional do partido. Não podia compreender a verdadeira importância do movimento dos sovietes para a orientação socialista da sociedade. Ignorava as condições requeridas pela libertação dos operários. Autoridade, direção, força, exercidas de um lado, organização, do outro - tal era a sua maneira de raciocinar. Disciplina e ditadura são as palavras que surgem mais frequentemente nos seus escritos. Compreende-se, pois, facilmente, porque não podia aceitar ou apreciar as ideias e ações da “ultraesquerda”, que recusava a sua estratégia e reclamava o que, evidentemente, era indispensável na luta revolucionária para o socialismo - a saber, que os operários tomassem uma vez por todas a sua sorte em mãos.
IV

A apropriação pelos operários da sua própria libertação - problema central do socialismo -, era o objetivo fundamental de todas as polémicas entre os ultraesquerda e os bolcheviques. O desacordo sobre a questão do partido encontrava o seu paralelo no descordo sobre os sindicatos. A ultraesquerda pensava que já não havia lugar para os revolucionários no seio dos sindicatos, que era, pelo contrário, necessário construírem os seus próprios quadros organizacionais no interior das fábricas, lugares de trabalho comuns. Contudo, graças à sua autoridade usurpada, os bolcheviques tinham conseguido, desde as primeiras semanas da revolução alemã, convencer os operários a regressarem aos sindicatos capitalistas reacionários. Para atacar os ultraesquerda, para denunciá-los como contrarrevolucionários, Lênin utiliza, uma vez mais, no seu panfleto as suas formulas mecanicistas. A sua argumentação contra a posição da esquerda não se refere aos sindicatos alemães, mas às experiências sindicais dos bolcheviques na Rússia. É geralmente admitido que nos seus princípios, os sindicatos tiveram uma função importante na luta da classe operária. Os sindicatos na Rússia eram muito jovens e justificavam o entusiasmo de Lênin. Contudo, a situação era muito diferente nos outros países. De úteis e progressistas nos primeiros dias, os sindicatos tinham-se transformado nos velhos países capitalistas em obstáculos à libertação dos operários. Tinham-se tornado instrumentos da contrarrevolução, e a esquerda alemã tinha tirado conclusões desta evolução.
O próprio Lênin viu-se obrigado a constatar que com o tempo se tinha constituído uma camada “de aristocracia operária exclusivamente corporativista, arrogante, suporte do imperialismo, pequeno-burguesa, corrupta e degenerada”. É esta guilda da corrupção, esta direção de bandidos que está hoje à cabeça do movimento sindicalista no mundo e vive nas costas dos trabalhadores. Era a esse movimento sindical que a ultraesquerda se referia quando pedia aos trabalhadores para o abandonarem. Lênin, contudo, avançava demagogicamente o exemplo do jovem movimento sindical russo o qual não partilhava as características dos velhos sindicatos dos outros países. A partir de uma experiência específica, correspondendo ao um período dado e a circunstâncias particulares, ele achava possível tirar conclusões aplicáveis à escala mundial. A partir da sua argumentação, o revolucionário deve sempre estar onde se encontram as massas. Mas onde estão elas realmente? Nos escritórios dos sindicatos? Nas reuniões de aderentes? Nos encontros secretos entre dirigentes sindicais e representantes do Capital? Não, as massas estão nas fábricas, nos seus locais de trabalho, e é lá que é necessário tornar eficaz a sua cooperação e reforçar a sua solidariedade. A organização da fábrica, o sistema dos conselhos, tal é a organização autentica da revolução, que deve substituir todos os partidos e sindicatos.
Nas organizações de fábrica não há lugar para os profissionais de direção; já não há separação entre chefes e subordinados, distinção entre intelectuais e simples militantes. É um quadro que desencoraja as manifestações de egoísmo, o espírito de rivalidade, a corrupção e o filisteísmo. É aí que os operários devem tomar conta dos seus assuntos.
Mas para Lênin, tudo era diferente. Ele queria manter os sindicatos; transforma-los a partir do interior, substituir os funcionários social-democratas por outros, comunistas; substituir uma má burocracia por uma boa. A má satisfazia-se na social-democracia, a boa no bolchevismo. Entretanto vinte anos de experiência demonstraram a inanidade de uma tal concepção. Seguindo os conselhos de Lênin, os comunistas tentaram todos os métodos possíveis para reformar os sindicatos. O resultado foi nulo. Nula igualmente a sua tentativa para constituir os seus próprios sindicatos. A concorrência sindical entre social-democratas e bolcheviques eram uma concorrência na corrupção. Nesse mesmo processo, as energias revolucionárias dos operários consumiram-se em lugar de concentrarem as suas forças para lutarem contra o fascismo, os operários pagaram o custo de uma experiência absurda e vã para proveito de diversas burocracias. As massas perderam a confiança em si próprias, e nas “suas” organizações. Sentiram-se enganadas. Os métodos típicos do fascismo: ditar cada passo aos operários, impedir o despertar da iniciativa, sabotar todo o embrião de consciência de classe, desmoralizar as massas por derrotas sucessivas, e torna-las impotentes, todos esses métodos já tinham sido provados ao longo dos vinte anos de trabalho executado nos sindicatos segundo os princípios bolcheviques. A vitória do fascismo foi tanto mais fácil quanto os dirigentes operários nos sindicatos e nos partidos tinham já modelado para ele o material humano capaz de se adaptar ao seu molde.
V

Sobre a questão do parlamentarismo, Lênin aparecia igualmente como defensor de uma instituição política ultrapassada, tornada obstáculo da evolução política e um perigo para a emancipação proletária, os ultraesquerda combatiam o parlamentarismo sob todas as suas formas. Recusavam participar nas eleições e não respeitavam as decisões parlamentares. Lênin, contudo, consagrava muitas energias à atividade parlamentar e atribuía-lhe grande importância. A ultraesquerda declarava o parlamentarismo historicamente ultrapassado, mesmo como simples tribuna de agitação, e não via nele senão uma perpétua fonte de corrupção tanto para os parlamentares como para os operários. O parlamentarismo adormecia a consciência revolucionária e a determinação das massas, veiculando ilusões de reformas legais. Nos momentos críticos, o parlamento transformava-se numa arma da contrarrevolução. Era preciso destruí-lo ou, melhor ou pior, sabota-lo. Era preciso combater a tradição parlamentar na medida em que ela tinha ainda uma função na tomada de consciência proletária. Para provar o contrário, Lênin criou uma astuciosa distinção entre as instituições ultrapassadas historicamente e as instituições ultrapassadas politicamente. Seguramente, o parlamentarismo, argumentava ele está ultrapassado historicamente, mas não politicamente, e por isso é um facto com que é preciso contar. É preciso participar no parlamento porque ele tem ainda uma função política. Que argumento! O capitalismo, também ele, apenas está ultrapassado historicamente. Segundo a lógica de Lênin, não é, pois possível combate-lo de uma maneira revolucionária. Convirá muito mais encontrar um compromisso. O oportunismo, a traficância, o manobrismo político - tais seriam as consequências da táctica de Lênin. A monarquia, também ela, tem ainda uma função política. Segundo Lênin, os operários não teriam o direito de suprimi-la, mas deveriam elaborar uma solução de compromisso. O mesmo seria para a Igreja, à qual, aliás, pertencem largas camadas do povo. Um revolucionário, insistia Lênin, deve estar onde estão as massas. A coerência obrigá-lo-ia, pois a dizer: “Entrem na Igreja, pois esse é o vosso dever revolucionário”. E, enfim, há o fascismo. Um dia virá em que também o fascismo será um anacronismo histórico, mas não político. Que fazer então? Aceitar a evidência e concluir um compromisso com o fascismo. Segundo o raciocínio de Lênin, um pacto entre Stalin e Hitler provaria somente que Stalin é, na realidade, o melhor discípulo de Lênin. E não seria absolutamente surpreendente que num futuro próximo, os agentes bolcheviques glorifiquem o pacto entre Moscou e Berlim como a única táctica revolucionária.
A posição de Lênin sobre a questão do parlamentarismo apenas é uma prova suplementar da sua incapacidade para compreender as necessidades e características fundamentais da revolução proletária. A sua revolução é inteiramente burguesa; trata-se de uma luta para conquistar a maioria, para assegurar as posições governamentais e colocar a mão sobre o aparelho legislativo. Ele julgava realmente importante ganhar tantos votos quanto possível quando das campanhas eleitorais, ter uma importante fracção bolchevique nos parlamentos, contribuir para determinar a forma e o conteúdo da legislação, participar na direção política. Não notava que nos nossos dias o parlamentarismo não passa de um simples “bluff”, uma ilusão de óptica, e que o verdadeiro poder da sociedade burguesa se situa em esferas completamente diferentes; que, a despeito de todas as derrotas parlamentares possíveis, a burguesia deterá ainda meios suficientes para impor a sua vontade e interesses nos sectores não parlamentares. Lênin não via os efeitos desmoralizantes do parlamentarismo sobre as massas, não notava o efeito debilitante da corrupção parlamentar sobre a moral pública. Os políticos parlamentares corrompidos receavam pelo seu futuro. Houve uma época, na Alemanha pré-fascista, em que os reacionários podiam fazer passar no Parlamento não importa que lei ameaçando simplesmente provocar a sua dissolução. Que ameaça mais terrível para os parlamentares que implicava o fim dos seus rendimentos fáceis! Para evitar isso, eles estavam prontos a tudo. E será diferente hoje na Alemanha, Rússia e Itália? Os fantoches parlamentares não têm qualquer opinião, qualquer vontade, eles não passam de servidores dos seus patrões fascistas. Não há dúvida que o parlamentarismo está inteiramente degenerado e corrompido. Mas porque é que o proletariado não pôs fim à deterioração de um instrumento político que antes tinha utilizado para os seus fins? Suprimir o parlamentarismo por um ato de heroísmo revolucionário teria sido muito mais útil e instrutivo para a tomada de consciência proletária que não o é a miserável comédia a que chegou o parlamentarismo na sociedade fascista. Mas uma tal atitude era basicamente estranha a Lênin, como o é hoje a Stalin. O cuidado de Lênin não era libertar os operários da sua escravidão mental e física. Ele não estava preocupado com a falsa consciência das massas nem com a sua autoalienação enquanto seres humanos. O problema, para ele, resumia-se a um problema de poder. Como um burguês, ele pensava em termos de ganhos e perdas, de mais e menos, crédito e débito; e todas as suas avaliações de homem de negócios apenas diziam respeito à fenómenos externos: número de aderentes, número de votos, lugares nos parlamento, postos de direção. O seu materialismo é um materialismo burguês, raciocinando sobre mecanismos e não sobre seres humanos. Lênin não é capaz de pensar realmente em termos sociohistóricos. Para ele, o parlamento é o parlamento: um conceito abstrato no vazio, revestindo o mesmo significado em todos os países e épocas. Certamente, ele reconhecia que o parlamentarismo atravessa diversas fases evolutivas, e assinala-o na sua argumentação, mas não aplica esta constatação nem na sua teoria nem na sua prática. Nas suas polémicas a favor do parlamentarismo, brande o exemplo dos primeiros parlamentos do período ascendente do capitalismo, para não ficar sem argumentos. E ataca os parlamentos degenerados, fá-lo do ponto de vista dos parlamentos de criação recente, contudo ultrapassados desde há muito tempo. Em resumo, decide que a política é a arte do possível, embora para os operários a política é a arte da revolução.
VI

Resta analisar a posição de Lênin sobre a questão dos compromissos. Durante a Guerra Mundial, a social-democracia alemã vendeu-se à burguesia. Contudo, a despeito dela, era herdeira da revolução alemã. Isso foi possível, numa larga medida, graças à Rússia que teve a sua parte de responsabilidade na eliminação do movimento alemão dos conselhos. O poder que tinha caído nos braços da social-democracia foi desperdiçado em pura perda. A social-democracia limitou-se a renunciar através da sua velha política de colaboração de classes, satisfeita em partilhar o poder com a burguesia nas costas dos trabalhadores durante o período de reconstrução do capitalismo. Os operários radicais alemães opuseram a esta traição o “slogan”: “Não aos compromissos com a contrarrevolução”. Tratava-se aí de um caso concreto, de uma situação específica, que indicava uma decisão parcelar. Lênin, incapaz de reconhecer os verdadeiros problemas, fez desta questão concreta um problema abstrato. Com os ares de um general e a infalibilidade de um cardeal, tentou convencer os ultraesquerda que os compromissos com os adversários políticos são, em todas as circunstâncias, um dever revolucionário. Lendo hoje as passagens do panfleto de Lênin que tratam dos compromissos, não se pode deixar de aproximar as observações feitas por Lênin em 1920 e a atual política de compromisso conduzida por Stalin. Não há um único defeito mortal da teoria bolchevique que se não tenha tornado realidade sob Stalin. Segundo Lênin, os ultraesquerda deveriam ter assinado o Tratado de Versalhes. Contudo o partido comunista, sempre de acordo com Lênin, concluiu um compromisso com os hitlerianos e protestou a seu lado contra esse mesmo tratado. O “nacional-bolchevismo”, pregado na Alemanha pelo oposicionista de Laufenberg. Em 1919, foi criticado por Lênin, como um “absurdo gritante”. Mas Radek e o partido comunista, seguindo sempre os princípios de Lênin, concluíram um compromisso com o nacionalismo alemão, protestaram contra a ocupação da bacia do Ruhr e celebraram o herói nacional Schlageter. A SDN era, para retomar os termos de Lênin, “um bando de ladrões capitalistas e bandidos” que os operários deviam combater com a máxima energia. Contudo, Stalin, seguindo a táctica de Lênin elaborou um compromisso com esses mesmos bandidos e a URSS entrou na SDN. O conceito de “povo” (Folk) é para Lênin uma concessão criminosa feita à ideologia contrarrevolucionária de pequena-burguesia. Isso não impede os leninistas Stalin e Dimitrov de realizarem um compromisso coma a pequena-burguesia para lançar o movimento idiota das “Frentes Populares”. Aos olhos de Lênin, o imperialismo era o maior inimigo do proletariado mundial, e contra ele era preciso mobilizar todas as forças. Mas Stalin, como perfeito leninista, uma vez mais, está muito ocupado a tramar uma aliança com o imperialismo hitleriano. Será preciso mais exemplos mais exemplos? A experiência histórica ensina-nos que todos os compromissos feitos entre a revolução e a contrarrevolução apenas podem trazer proveito a esta última. Toda a política de compromisso é uma política de bancarrota para o movimento revolucionário. O que tinha começado como um simples compromisso com a social-democracia alemã, conduziu a Hitler. O que Lênin justificava como um compromisso necessário conduziu a Stalin. Diagnosticando como “doença infantil do comunismo” a recusa revolucionária dos compromissos, Lênin sofria da doença senil do oportunismo, o pseudocomunismo.
VII

Analisada de um ponto de vista crítico, a descrição do bolchevismo traçada no panfleto de Lênin apresenta as seguintes características principais:
O bolchevismo é uma doutrina nacionalista. Concebido na origem, essencialmente para resolver um problema nacional, ela viu-se mais tarde elevada ao nível de uma teoria e uma prática de alcance internacional, e de uma doutrina geral. O seu carácter nacionalista é também posto em evidência pelo seu apoio às lutas de independência nacional levadas a cabo por povos colonizados.
O bolchevismo é um sistema autoritário. O cume da pirâmide social é o centro de decisão determinante. A autoridade é encarnada na pessoa todo-poderosa. No mito do chefe, o ideal burguês da personalidade encontra a sua mais perfeita expressão.
Organizacionalmente, o bolchevismo é altamente centralizado. O comité central detém a responsabilidade de toda a iniciativa, instrução ou ordem. Os dirigentes da organização têm a função da burguesia; a única função dos operários é a de obedecer às ordens.
O bolchevismo é uma concepção ativista do poder. Pensado exclusivamente como a conquista do poder político, não se diferencia das formas de dominação burguesas tradicionais. Mesmo no seio da organização, os membros não gozam de autodeterminação. O exército serve ao Partido como modelo de organização.
O bolchevismo é uma ditadura. Utilizando a força brutal e métodos terroristas, orienta todas as funções em direção à eliminação das instituições e correntes de opinião não bolcheviques. A sua “ditadura do proletariado” é uma ditadura de uma burocracia ou de uma única pessoa.
O bolchevismo é um método mecanicista. A ordem social que visa é fundada na coordenação automática, a conformidade obtida pela técnica e o totalitarismo mais eficazes. A economia centralmente “planificada” reduz estreitamente as questões socioeconômicas a problemas técnico-organizacionais.
A estrutura social do bolchevismo é de natureza burguesa. Ele não elimina absolutamente o sistema de salariato e recusa a apropriação pelo proletariado dos produtos do seu trabalho. Fazendo-o, continua e fundamentalmente no quadro das relações de classe burguesas, e perpétua o capitalismo.
O bolchevismo apenas é um elemento revolucionário no quadro de uma revolução burguesa. Incapaz de realizar o sistema soviético, ele é, por isso mesmo, incapaz de transformar radicalmente a estrutura da sociedade burguesa e a sua economia. Não é o socialismo que instaura, mas sim o capitalismo de Estado.
O bolchevismo não é uma etapa de transição que provocaria posteriormente a sociedade socialista. Sem o sistema dos sovietes, sem a revolução radical e total dos homens e das coisas, não pode preencher a exigência socialista primordial, que é a de pôr termo à alienação humana engendrada pelo capitalismo. Ele representa a última etapa da sociedade burguesa, e não o primeiro passo em direção a uma nova sociedade.
Estes nove pontos demonstram uma oposição irreconciliável entre o bolchevismo e o socialismo. Eles ilustram, com toda a clareza necessária, o carácter burguês do movimento bolchevique e o seu parentesco próximo com o fascismo. Nacionalismo, autoritarismo, centralismo, direção do chefe, política do poder, reino do terror, dinâmicas mecanicistas, incapacidade de socializar - todos esses traços fundamentais do fascismo existiam e existem no bolchevismo. O fascismo não passa de uma simples cópia do bolchevismo. Por esta razão, a luta contra o fascismo deve começar pela luta contra o bolchevismo.