A Luta Contra o Fascismo Começa Pela Luta Contra o Bolchevismo
Otto
Rühle
I
É preciso colocar a Rússia na primeira linha dos
novos Estados totalitários. Ela foi a primeira a adoptar o novo princípio de
Estado. Foi ela que levou mais longe a sua aplicação. Foi a primeira a
estabelecer uma ditadura constitucional, com o sistema de terror político e
administrativo que o acompanha. Adoptando todas as características do Estado
totalitário, tornou-se assim o modelo para todos os países constrangidos a
renunciar ao sistema democrático para se voltarem para a ditadura. A Rússia
serviu de exemplo ao fascismo.
Não se trata absolutamente de um acidente nem de
uma brincadeira de mau gosto da história. A semelhança de sistemas, longe de
ser apenas aparente, é aqui real. Tudo mostra que enfrentamos expressões e
consequências de princípios idênticos aplicados a níveis diferentes de
desenvolvimento histórico e político. Que isso agrade ou não aos partidos
"comunistas", o facto é que o Estado, como a maneira de governar na
Rússia, em nada difere da Itália e da Alemanha. Eles são fundamentalmente semelhantes.
Pode-se falar de um "Estado soviético" vermelho, negro ou castanho,
assim como de um fascismo vermelho, negro ou castanho. Mesmo se existem entre
países certas diferenças ideológicas, a ideologia nunca teve uma função
determinante. Aliás, as ideologias são mutáveis, e tais mudanças não refletem
forçosamente o carácter e as funções do aparelho de Estado. Por outro lado, a
manutenção da propriedade privada na Alemanha e em Itália não passa de uma
modificação secundária. A abolição da propriedade privada pode ser abolida no
quadro do capitalismo. O que determina de facto uma sociedade socialista é,
além da abolição da propriedade privada dos meios de produção, a gestão pelos
operários dos produtos do seu trabalho, e o fim do salariato. Tanto na Rússia
como na Itália estas condições não estão preenchidas. Se bem que, segundo
alguns, a Rússia esteja mais próxima do socialismo que outros países, daí não
se deduz que o "Estado soviético" tenha ajudado o proletariado
internacional a aproximar-se dos seus objetivos de classe. Pelo contrário, uma
vez que a Rússia se faz designar como um Estado socialista, ela engana os
trabalhadores do mundo inteiro. O operário consciente sabe o que é o fascismo,
e combate-o; mas no que respeita à Rússia, ele está demasiado inclinado aceitar
o mito da sua natureza socialista. Esta ilusão retarda a ruptura completa e
resoluta com o fascismo, porque entrava a luta principal contra as causas, as
condições e as circunstâncias que - na Rússia como na Alemanha e em Itália -
conduziram ao mesmo sistema de Estado e governo. Assim, o mito russo
transforma-se em arma ideológica da contrarrevolução.
Ninguém pode servir dois senhores. Um Estado
totalitário também não. Se o fascismo serve os interesses do capitalismo e do
imperialismo, ele não pode satisfazer as necessidades dos trabalhadores. Se, a
despeito de tudo isso, duas classes opostas aparentemente sustentam o mesmo
sistema de Estado, é evidente que qualquer coisa não está bem e uma delas se
engana. Ninguém pode, reduzindo o problema a uma simples questão de forma,
pretender que ele não seja importante e que, ainda que por vezes as suas formas
políticas sejam diferentes, os seus conteúdos podem variar consideravelmente.
Isto conduzirá a uma automistificação. Para um marxista, as coisas não se
passam assim; a forma e o conteúdo são indissociáveis. Portanto, se o Estado
soviético serve de modelo ao fascismo, deve conter características estruturais
e funcionais comuns. Para determinar quais, é-nos preciso regressar à análise
do "sistema soviético", tal como foi inspirado pelo leninismo, que é
a aplicação dos princípios bolcheviques às condições russas. E se se pode
estabelecer uma identidade entre o bolchevismo e o fascismo, então o
proletariado não pode ao mesmo tempo combater o fascismo e apoiar o
"sistema soviético" russo. Pelo contrário, o combate contra o
fascismo deve começar pelo combate ao bolchevismo.
II
Desde o princípio, Lênin concebia o
bolchevismo como um fenómeno puramente russo. Ao longo dos seus numerosos anos
de atividade política, ele nunca tentou içar o sistema bolchevique ao nível das
formas de luta utilizadas nos outros países. Era um social-democrata, para
quem Bebel e Kautsky continuavam os líderes geniais da
classe operária, e ele ignorava a ala esquerda do movimento socialista alemão
que se opunha precisamente aos heróis de Lênin e a todos os
oportunistas. Ignorando esta esquerda, ele continuou, pois, isolado, rodeado
por um pequeno grupo de emigrados russos, e manteve-se sob a influência
de Kautsky, ainda quando a "esquerda" alemã, dirigida por Rosa
Luxemburgo, já estava lançada na luta aberta contra o Kautskismo.
A Rússia era a única preocupação de Lênin. O
seu objetivo era acabar com o sistema feudal czarista e conquistar o máximo de
influência política para o seu partido social-democrata no quadro da revolução
burguesa. Contudo a força da Revolução de 1917 conduziu Lênin muito
para lá dos seus objetivos presumidos, e o partido bolchevique alcançou o poder
em toda a Rússia. Contudo, esse partido sabia que não podia continuar no poder
e fazer avançar o processo de socialização sem desencadear a revolução
proletária mundial. Mas a sua atuação nesse domínio teve resultados infelizes.
Contribuindo para remeter os operários alemães aos partidos, sindicatos, parlamento,
e destruir o movimento dos conselhos alemães, os bolcheviques prestaram um
grande auxílio ao esmagamento da revolução europeia nascente.
O partido bolchevique, formado por revolucionários
profissionais e largas massas atrasadas, continuava isolado. Não podia
desenvolver um verdadeiro sistema soviético durante os anos da guerra civil,
intervenções estrangeiras, declínio económico, fracassos nas tentativas de
socialização e constituição de um Exército Vermelho improvisado.
Ainda que os sovietes, desenvolvidos pelos mencheviques,
sejam estranhos ao esquema bolchevique, foi, contudo, graças a eles que
estes chegaram ao poder. Uma vez assegurada a estabilização do poder, e
iniciado o processo de reconstrução económica, o partido bolchevique não sabia
já como coordenar o sistema de sovietes, que não era o seu, com as suas
próprias atividades e decisões. Contudo, realizar o socialismo era também o
desejo dos bolcheviques, e isso necessitava da intervenção do proletariado
mundial.
Para Lênin, era essencial ganhar os
proletários do mundo para os métodos bolcheviques. Era na verdade muito
incómodo constatar que os operários dos outros países, a despeito do grande
triunfo obtido pelos bolcheviques, se mostravam pouco inclinados a aceitar a
sua teoria e prática, mas eram muito mais atraídos pelo movimento dos
conselhos, que apareciam então em muitos países e particularmente na Alemanha.
Esse movimento dos conselhos já não tinha qualquer
utilidade para Lênin, na Rússia. Em outros países europeus, manifestava-se
uma tendência nítida de oposição a levantamentos do tipo bolchevique. A
despeito da enorme propaganda desenvolvida por Moscou em todos os países, a
agitação conduzida pelo que se chama a ultraesquerda para uma revolução baseada
no movimento dos conselhos despertou, tal como Lênin o sublinhou, um
eco bem maior de todos os propagandistas enviados pelo partido bolchevique. O
Partido Comunista Alemão, seguindo o exemplo do bolchevismo, continuava um
pequeno grupo histérico e barulhento, formado, principalmente por elementos
proletarizados da burguesia, enquanto que o movimento dos conselhos atraía os
elementos mais determinados da classe operária. Para fazer face a esta
situação, era preciso reforçar a propaganda bolchevique, era preciso atacar a
"ultraesquerda" e modificar a sua influência a favor do bolchevismo.
Uma vez que o sistema dos sovietes tinha falhado na
Rússia, podia, como a "concorrência" radical, ousar tentar provar ao
mundo que aquilo em que o bolchevismo tinha falhado, na Rússia, se podia obter
noutro local, sem necessidade dele? Para se defender, Lênin escreveu
o seu panfleto "O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo", ditado
pelo medo de perder o poder e pela indignação perante o sucesso dos histéricos.
O panfleto apareceu inicialmente sob o título "Ensaio de Exposição Popular
da Estratégia e Táctica Marxistas", mas depois esta frase ambiciosa e
idiota foi suprimida. Era demais. Esta bula papal, agressiva, grosseira e
odiosa, era uma verdadeira benção para qualquer contrarrevolucionário. De todas
as declarações programáticas do bolchevismo esta é a que revela melhor o seu
carácter real. É o bolchevismo posto a nu. Quando em 1935, Hitler suprimiu,
em toda a Alemanha, toda a literatura comunista e socialista, a publicação e a
difusão do panfleto de Lênin continuaram autorizadas.
No que respeita ao conteúdo do panfleto, não nos
interessamos aqui sobre o que diz a propósito da Revolução russa, a história do
bolchevismo e as outras correntes do movimento operário, ou as circunstâncias
que permitiram a vitória do bolchevismo. O nosso único propósito será de
analisar os argumentos principais que, na época da controvérsia entre Lênin e
a "ultraesquerda", ilustravam as diferenças decisivas entre os dois
adversários.
III
O partido bolchevique, originalmente secção
social-democrata russa da II Internacional, constitui-se não na Rússia, mas na
emigração. Depois da cisão de Londres, em 1903, a ala bolchevique da
social-democracia russa reduziu-se a uma seita secreta. As "massas que a
apoiavam apenas existiam no cérebro dos seus chefes. Contudo, esta pequena
elite era uma organização estritamente disciplinada, sempre pronta para as
lutas militantes, e submetida a purgas contínuas para manter a sua integridade.
O partido era necessário como a academia militar dos revolucionários
profissionais. Os seus princípios pedagógicos marcantes eram a autoridade
indiscutida do chefe, um centralismo rígido, uma disciplina de ferro, o
conformismo, o militarismo e o sacrifício da personalidade aos interesses do
Partido. O que Lênin desenvolvia na realidade era uma elite de
intelectuais, um núcleo que, lançado na revolução, tomaria a direção e se
encarregaria do poder. É inútil procurar determinar lógica e abstratamente se
uma tal preparação para a revolução é justa ou errada. O problema deve
resolver-se dialeticamente. É preciso levantar para já outras questões: que
espécie de revolução estava em gestação? Qual era o seu objetivo?
O partido de Lênin trabalhava, no quadro
da tardia revolução burguesa russa, no derrube do regime feudal czarista. Nesse
tipo de revolução, quanto mais a vontade do partido dirigente é centralizada e
orientada para um único objetivo, tanto mais o processo de formação do Estado
será prometedor. Contudo, o que se pode considerar como uma feliz solução dos
problemas revolucionários numa revolução burguesa não pode passar ao mesmo
tempo pela solução dos problemas da revolução proletária. A diferença
estrutural entre a sociedade burguesa e a nova sociedade socialista exclui uma
tal ambivalência.
Segundo o método revolucionário de Lênin, os
chefes são o cérebro das massas. Possuindo a educação revolucionária
apropriada, são ainda capazes de apreciar as situações e comandar as forças
combatentes. Eles são revolucionários profissionais, os generais do grande
exército civil. Esta distinção entre o cérebro e o corpo, entre os intelectuais
e as massas, os oficiais e os simples soldados, corresponde à dualidade da
sociedade de classe, à ordem social burguesa. Uma classe é treinada para
comandar, a outra para obedecer. É a velha forma de classe de que saiu a
concepção leninista do partido. A sua organização é apenas uma simples réplica
da realidade burguesa. A sua revolução é objetivamente determinada pelas mesmas
forças que criam a ordem social burguesa, abstração feita dos objetivos que
acompanham esse processo.
Quem quer que procure estabelecer um regime
burguês, encontrará, no princípio da separação entre o chefe e as massas, entre
a elite e a classe operária, a preparação estratégica de uma tal revolução.
Quanto mais a direção é inteligente, instruída e superior, mais as massas são
disciplinadas e obedientes, e também mais uma tal revolução tem possibilidades
de vencer. Procurando fazer a revolução burguesa na Rússia, o partido de Lênin estava,
pois, completamente adaptado ao seu objetivo. Quando, contudo, a revolução
russa mudou de natureza, quando as suas características proletárias se tornaram
evidentes, os métodos tácticos e estratégicos de Lênin perderam o seu
valor. Se ele levou a sua avante não foi por causa da sua elite, mas sim do
movimento dos sovietes que ele não tinha incluído nos seus planos
revolucionários. E quando Lênin, uma vez assegurado pelos sovietes o
triunfo da revolução, decidiu uma vez mais livrar-se deles, com eles todos os
caracteres proletários da revolução desapareceram. O caráter burguês da
revolução ocupou de novo a cena, encontrando a sua conclusão natural no stalinismo.
A despeito da sua preocupação da dialética
marxista, Lênin era incapaz de conceber dialeticamente a evolução
histórica dos processos sociais. O seu pensamento continuava mecanicista,
seguindo regras rígidas. Para ele, apenas existia um único partido
revolucionário - o seu; uma única revolução - a revolução Russa; um único
método - o bolchevismo. E o que tinha obtido sucesso na Rússia, devia obtê-lo
também na Alemanha, França, América, China e Austrália. O que era correto para
a revolução burguesa russa, sê-lo-ia também para a revolução proletária
mundial. A aplicação monótona de uma fórmula, descoberta uma vez por todas,
evoluía num círculo egocêntrico onde não entravam em consideração nem a época,
as circunstâncias ou os níveis de desenvolvimento, realidades culturais, ideias
ou homens. Com Lênin, era o advento do maquinismo em política[1*]; ele era "técnico" o "inventor" da revolução,
o representante da vontade todo-poderosa do chefe. Todas as características
fundamentais do fascismo existiam na sua doutrina, estratégia,
"planificação social" e arte de manejar os homens. Ele não podia
perceber a profunda significação revolucionária da rejeição pela esquerda da
política tradicional do partido. Não podia compreender a verdadeira importância
do movimento dos sovietes para a orientação socialista da sociedade. Ignorava
as condições requeridas pela libertação dos operários. Autoridade, direção,
força, exercidas de um lado, organização, do outro - tal era a sua maneira de
raciocinar. Disciplina e ditadura são as palavras que surgem mais
frequentemente nos seus escritos. Compreende-se, pois, facilmente, porque não
podia aceitar ou apreciar as ideias e ações da "ultraesquerda", que
recusava a sua estratégia e reclamava o que, evidentemente, era indispensável
na luta revolucionária para o socialismo - a saber, que os operários tomassem
uma vez por todas a sua sorte em mãos.
IV
A apropriação pelos operários da sua própria
libertação - problema central do socialismo -, era o objetivo fundamental de
todas as polémicas entre os ultraesquerda e os bolcheviques. O desacordo sobre
a questão do partido encontrava o seu paralelo no descordo sobre os sindicatos.
A ultraesquerda pensava que já não havia lugar para os revolucionários no seio
dos sindicatos, que era, pelo contrário, necessário construírem os seus
próprios quadros organizacionais no interior das fábricas, lugares de trabalho
comuns[2*]. Contudo, graças à sua autoridade
usurpada, os bolcheviques tinham conseguido, desde as primeiras semanas da
revolução alemã, convencer os operários a regressarem aos sindicatos
capitalistas reacionários. Para atacar os ultraesquerda, para os denunciar como
contrarrevolucionários, Lênin utiliza, uma vez mais, no seu panfleto
as suas fórmulas mecanicistas. A sua argumentação contra a posição da esquerda
não se refere aos sindicatos alemães, mas às experiências sindicais dos
bolcheviques na Rússia. É geralmente admitido que nos seus princípios, os
sindicatos tiveram uma função importante na luta da classe operária. Os
sindicatos na Rússia eram muito jovens e justificavam o entusiasmo de Lênin.
Contudo, a situação era muito diferente nos outros países. De úteis e
progressistas nos primeiros dias, os sindicatos tinham-se transformado nos
velhos países capitalistas em obstáculos à libertação dos operários. Tinham-se
tornado instrumentos da contrarrevolução, e a esquerda alemã tinha tirado
conclusões desta evolução.
O próprio Lênin viu-se obrigado a
constatar que com o tempo se tinha constituído uma camada "de aristocracia
operária exclusivamente corporativista, arrogante, suporte do imperialismo,
pequeno-burguesa, corrupta e degenerada". É esta guilda da corrupção, esta
direção de bandidos que está hoje à cabeça do movimento sindicalista no mundo e
vive nas costas dos trabalhadores. Era a esse movimento sindical que a ultraesquerda
se referia quando pedia aos trabalhadores para o abandonarem. Lênin,
contudo, avançava demagogicamente o exemplo do jovem movimento sindical russo o
qual não partilhava as características dos velhos sindicatos dos outros países.
A partir de uma experiência específica, correspondendo ao um período dado e a
circunstâncias particulares, ele achava possível tirar conclusões aplicáveis à
escala mundial. A partir da sua argumentação, o revolucionário deve sempre
estar onde se encontram as massas. Mas onde estão elas realmente? Nos
escritórios dos sindicatos? Nas reuniões de aderentes? Nos encontros secretos
entre dirigentes sindicais e representantes do Capital? Não, as massas estão
nas fábricas, nos seus locais de trabalho, e é lá que é necessário tornar
eficaz a sua cooperação e reforçar a sua solidariedade. A organização da
fábrica, o sistema dos conselhos, tal é a organização autêntica da revolução,
que deve substituir todos os partidos e sindicatos.
Nas organizações de fábrica não há lugar para os
profissionais de direção; já não há separação entre chefes e subordinados,
distinção entre intelectuais e simples militantes. É um quadro que desencoraja
as manifestações de egoísmo, o espírito de rivalidade, a corrupção e o
filistinismo. É aí que os operários devem tomar conta dos seus assuntos.
Mas para Lênin, tudo era diferente. Ele queria
manter os sindicatos; transformá-los a partir do interior, substituir os
funcionários social-democratas por outros, comunistas; substituir uma má
burocracia por uma boa. A má satisfazia-se na social-democracia, a boa no
bolchevismo. Entretanto vinte anos de experiência demonstraram a inanidade de
uma tal concepção. Seguindo os conselhos de Lênin, os comunistas tentaram
todos os métodos possíveis para reformar os sindicatos. O resultado foi nulo.
Nula igualmente a sua tentativa para constituir os seus próprios sindicatos. A
concorrência sindical entre social-democratas e bolcheviques eram uma
concorrência na corrupção. Nesse mesmo processo, as energias revolucionárias
dos operários consumiram-se em lugar de concentrarem as suas forças para
lutarem contra o fascismo, os operários pagaram o custo de uma experiência
absurda e vã para proveito de diversas burocracias. As massas perderam a
confiança em si próprias, e nas "suas" organizações. Sentiram-se
enganadas. Os métodos típicos do fascismo: ditar cada passo aos operários,
impedir o despertar da iniciativa, sabotar todo o embrião de consciência de
classe, desmoralizar as massas por derrotas sucessivas, e torná-las impotentes,
todos esses métodos já tinham sido provados ao longo dos vinte anos de trabalho
executado nos sindicatos segundo os princípios bolcheviques. A vitória do fascismo
foi tanto mais fácil quanto os dirigentes operários nos sindicatos e nos
partidos tinham já modelado para ele o material humano capaz de se adaptar ao
seu molde.
V
Sobre a questão do parlamentarismo, Lênin aparecia
igualmente como defensor de uma instituição política ultrapassada, tornada
obstáculo da evolução política e um perigo para a emancipação proletária, os ultraesquerda
combatiam o parlamentarismo sob todas as suas formas. Recusavam participar nas
eleições e não respeitavam as decisões parlamentares. Lênin, contudo,
consagrava muitas energias à atividade parlamentar e atribuía-lhe grande
importância. A ultraesquerda declarava o parlamentarismo historicamente
ultrapassado, mesmo como simples tribuna de agitação, e não via nele senão uma
perpétua fonte de corrupção tanto para os parlamentares como para os operários.
O parlamentarismo adormecia a consciência revolucionária e a determinação das
massas, veiculando ilusões de reformas legais. Nos momentos críticos, o
parlamento transformava-se numa arma da contrarrevolução. Era preciso
destruí-lo ou, melhor ou pior, sabotá-lo. Era preciso combater a tradição
parlamentar na medida que ela tinha ainda uma função na tomada de consciência
proletária. Para provar o contrário, Lênin criou uma astuciosa
distinção entre as instituições ultrapassadas historicamente e as instituições
ultrapassadas politicamente. Seguramente, o parlamentarismo, argumentava ele
está ultrapassado historicamente, mas não politicamente, e por isso é um facto
com que é preciso contar. É preciso participar no parlamento porque ele tem
ainda uma função política. Que argumento! O capitalismo, também ele, apenas
está ultrapassado historicamente. Segundo a lógica de Lênin, não é, pois,
possível combatê-lo de uma maneira revolucionária. Convirá muito mais encontrar
um compromisso. O oportunismo, a traficância, o manobrismo político - tais
seriam as consequências da táctica de Lênin. A monarquia, também ela, tem
ainda uma função política. Segundo Lênin, os operários não teriam o
direito de a suprimir mas deveriam elaborar uma solução de compromisso. O mesmo
seria para a Igreja, à qual, aliás, pertencem largas camadas do povo. Um
revolucionário, insistia Lênin, deve estar onde estão as massas. A
coerência obrigá-lo-ia, pois, a dizer: "Entrem na Igreja pois esse é o
vosso dever revolucionário". E, enfim, há o fascismo. Um dia virá em que
também o fascismo será um anacronismo histórico, mas não político. Que fazer
então? Aceitar a evidência e concluir um compromisso com o fascismo. Segundo o
raciocínio de Lênin, um pacto entre Stálin e Hitler provaria
somente que Stálin é, na realidade, o melhor discípulo de Lênin.
E não seria absolutamente surpreendente que num futuro próximo, os agentes
bolcheviques glorifiquem o pacto entre Moscovo e Berlim como a única táctica
revolucionária.
A posição de Lênin sobre a questão do
parlamentarismo apenas é uma prova suplementar da sua incapacidade para
compreender as necessidades e características fundamentais da revolução
proletária. A sua revolução é inteiramente burguesa; trata-se de uma luta para
conquistar a maioria, para assegurar as posições governamentais e colocar a mão
sobre o aparelho legislativo. Ele julgava realmente importante ganhar tantos votos
quanto possível quando das campanhas eleitorais, ter uma importante fracção
bolchevique nos parlamentos, contribuir para determinar a forma e o conteúdo da
legislação, participar na direção política. Não notava que nos nossos dias o
parlamentarismo não passa de um simples "bluff", uma ilusão de
óptica, e que o verdadeiro poder da sociedade burguesa se situa em esferas
completamente diferentes; que, a despeito de todas as derrotas parlamentares
possíveis, a burguesia deterá ainda meios suficientes para impor a sua vontade
e interesses nos sectores não parlamentares. Lênin não via os efeitos
desmoralizantes do parlamentarismo sobre a massas, não notava o efeito
debilitante da corrupção parlamentar sobre a moral pública. Os políticos
parlamentares corrompidos receavam pelo seu futuro. Houve uma época, na
Alemanha pré-fascista, em que os reacionários podiam fazer passar no Parlamento
não importa que lei ameaçando simplesmente provocar a sua dissolução. Que
ameaça mais terrível para os parlamentares que implicava o fim dos seus
rendimentos fáceis! Para evitar isso, eles estavam prontos a tudo. E será
diferente hoje na Alemanha, Rússia e Itália? Os fantoches parlamentares não têm
qualquer opinião, qualquer vontade, eles não passam de servidores dos seus
patrões fascistas. Não há dúvida que o parlamentarismo está inteiramente
degenerado e corrompido. Mas porque é que o proletariado não pôs fim à
deterioração de um instrumento político que antes tinha utilizado para os seus
fins? Suprimir o parlamentarismo por um ato de heroísmo revolucionário teria
sido muito mais útil e instrutivo para a tomada de consciência proletária que
não o é a miserável comédia a que chegou o parlamentarismo na sociedade
fascista. Mas uma tal atitude era basicamente estranha a Lênin, como o é
hoje a Stálin. O cuidado de Lênin não era libertar os operários
da sua escravidão mental e física. Ele não estava preocupado com a falsa
consciência das massas nem com a sua autoalienação enquanto seres humanos. O
problema, para ele, resumia-se a um problema de poder. Como um burguês, ele
pensava em termos de ganhos e perdas, de mais e menos, crédito e débito; e
todas as suas evoluções de homem de negócios apenas diziam respeito a fenómenos
externos: número de aderentes, número de votos, lugares nos parlamentos, postos
de direção. O seu materialismo é um materialismo burguês, raciocinando sobre
mecanismos e não sobre seres humanos. Lênin não é capaz de pensar
realmente em termos sócio-históricos. Para ele, o parlamento é o parlamento: um
conceito abstrato no vazio, revestindo o mesmo significado em todos os países e
épocas. Certamente, ele reconhecia que o parlamentarismo atravessa diversas
fases evolutivas, e assinala-o na sua argumentação, mas não aplica esta
constatação nem na sua teoria nem na sua prática. Nas suas polémicas a favor do
parlamentarismo, brande o exemplo dos primeiros parlamentos do período
ascendente do capitalismo, para não ficar sem argumentos. E ataca os
parlamentos degenerados, fá-lo do ponto de vista dos parlamentos de criação
recente, contudo ultrapassados desde há muito tempo. Em resumo, decide que a
política é a arte do possível, embora para os operários a política é a arte da
revolução.
VI
Resta analisar a posição de Lênin sobre a
questão dos compromissos. Durante a Guerra Mundial, a social-democracia alemã
vendeu-se à burguesia. Contudo, a despeito dela, era herdeira da revolução
alemã. Isso foi possível, numa larga medida, graças à Rússia que teve a sua
parte de responsabilidade na eliminação do movimento alemão dos conselhos. O
poder que tinha caído nos braços da social-democracia foi desperdiçado em pura
perda. A social-democracia limitou-se a renunciar através da sua velha política
de colaboração de classes, satisfeita em partilhar o poder com a burguesia nas
costas dos trabalhadores durante o período de reconstrução do capitalismo. Os
operários radicais alemães opuseram a esta traição o "slogan":
"Não aos compromissos com a contrarrevolução". Tratava-se aí de um
caso concreto, de uma situação específica, que indicava uma decisão
parcelar. Lênin, incapaz de reconhecer os verdadeiros problemas, fez desta
questão concreta um problema abstrato. Com os ares de um general e a
infalibilidade de um cardeal, tentou convencer os ultraesquerda que os
compromissos com os adversários políticos são, em todas as circunstâncias, um
dever revolucionário. Lendo hoje as passagens do panfleto de Lênin que
tratam dos compromissos, não se pode deixar de aproximar as observações feitas
por Lênin em 1920 e a atual política de compromisso conduzida
por Stálin. Não há um único defeito mortal da teoria bolchevique que se
não tenha tornado realidade sob Stálin. Segundo Lênin, os ultraesquerda
deveriam ter assinado o Tratado de Versalhes. Contudo o partido comunista,
sempre de acordo com Lênin, concluiu um compromisso com os hitlerianos e
protestou a seu lado contra esse mesmo tratado. O
"nacional-bolchevismo", pregado na Alemanha pelo oposicionista de
Laufenberg. Em 1919, foi criticado por Lênin, como um "absurdo
gritante"[3*]. Mas Radek e o partido
comunista, seguindo sempre os princípios de Lênin, concluíram um
compromisso com o nacionalismo alemão, protestaram contra a ocupação da bacia
do Ruhr e celebraram o herói nacional Schlageter[4*].
A SDN era, para retomar os termos de Lênin, "um bando de ladrões
capitalistas e bandidos" que os operários deviam combater com a máxima
energia. Contudo, Stálin, seguindo a táctica de Lênin elaborou um
compromisso com esses mesmos bandidos e a URSS entrou na SDN. O conceito de
"povo" (Folk) é para Lênin uma concessão criminosa feita à
ideologia contrarrevolucionária de pequena-burguesia. Isso não impede os
leninistas Stálin e Dimitrov de realizarem um compromisso
coma a pequena-burguesia para lançar o movimento idiota das "Frentes
Populares". Aos olhos de Lênin, o imperialismo era o maior inimigo do
proletariado mundial, e contra ele era preciso mobilizar todas as forças.
Mas Stálin, como perfeito leninista, uma vez mais, está muito ocupado a
tramar uma aliança com o imperialismo hitleriano. Será preciso mais exemplos
mais exemplos? A experiência histórica ensina-nos que todos os compromissos
feitos entre a revolução e a contrarrevolução apenas podem trazer proveito a
esta última. Toda a política de compromisso é uma política de bancarrota para o
movimento revolucionário. O que tinha começado como um simples compromisso com
a social-democracia alemã, conduziu a Hitler. O que Lênin justificava
como um compromisso necessário conduziu a Stálin. Diagnosticando como
"doença infantil do comunismo" a recusa revolucionária dos
compromissos, Lênin sofria da doença senil do oportunismo, o
pseudocomunismo.
VII
Analisada de um ponto de vista crítico, a descrição
do bolchevismo traçada no panfleto de Lênin apresenta as seguintes
características principais:
1.
O
bolchevismo é uma doutrina nacionalista. Concebido na origem, essencialmente
para resolver um problema nacional, ela viu-se mais tarde elevada ao nível de
uma teoria e uma prática de alcance internacional, e de uma doutrina geral. O
seu carácter nacionalista é também posto em evidência pelo seu apoio às lutas
de independência nacional levadas a cabo por povos colonizados.
2.
O
bolchevismo é um sistema autoritário. O cume da pirâmide social é o centro de
decisão determinante. A autoridade é encarnada na pessoa todo-poderosa. No mito
do chefe, o ideal burguês da personalidade encontra a sua mais perfeita
expressão.
3.
Organizacionalmente,
o bolchevismo é altamente centralizado. O comité central detém a
responsabilidade de toda a iniciativa, instrução ou ordem. Os dirigentes da
organização têm a função da burguesia; a única função dos operários é a de
obedecer às ordens.
4.
O
bolchevismo é uma concepção ativista do poder. Pensado exclusivamente como a
conquista do poder político, não se diferencia das formas de dominação
burguesas tradicionais. Mesmo no seio da organização, os membros não gozam de
autodeterminação. O exército serve ao Partido como modelo de organização.
5.
O
bolchevismo é uma ditadura. Utilizando a força brutal e métodos terroristas,
orienta todas as funções em direção à eliminação das instituições e correntes
de opinião não bolcheviques. A sua "ditadura do proletariado" é uma
ditadura de uma burocracia ou de uma única pessoa.
6.
O
bolchevismo é um método mecanicista. A ordem social que visa é fundada na
coordenação automática, a conformidade obtida pela técnica e o totalitarismo
mais eficazes. A economia centralmente "planificada" reduz
estreitamente as questões socioeconômicas a problemas técnico-organizacionais.
7.
A
estrutura social do bolchevismo é de natureza burguesa. Ele não elimina
absolutamente o sistema de salariato e recusa a apropriação pelo proletariado
dos produtos do seu trabalho. Fazendo-o, continua e fundamentalmente no quadro
das relações de classe burguesas, e perpétua o capitalismo.
8.
O
bolchevismo apenas é um elemento revolucionário no quadro de uma revolução
burguesa. Incapaz de realizar o sistema soviético, ele é, por isso mesmo,
incapaz de transformar radicalmente a estrutura da sociedade burguesa e a sua
economia. Não é o socialismo que instaura, mas sim o capitalismo de Estado.
9.
O
bolchevismo não é uma etapa de transição que provocaria posteriormente a
sociedade socialista. Sem o sistema dos sovietes, sem a revolução radical e
total dos homens e das coisas, não pode preencher a exigência socialista
primordial, que é a de pôr termo à alienação humana engendrada pelo
capitalismo. Ele representa a última etapa da sociedade burguesa, e não o
primeiro passo em direção a uma nova sociedade.
Estes nove pontos demonstram uma oposição
irreconciliável entre o bolchevismo e o socialismo. Eles ilustram, com toda a
clareza necessária, o carácter burguês do movimento bolchevique e o seu
parentesco próximo com o fascismo. Nacionalismo, autoritarismo, centralismo, direção
do chefe, política do poder, reino do terror, dinâmicas mecanicistas,
incapacidade de socializar - todos esses traços fundamentais do fascismo
existiam e existem no bolchevismo. O fascismo não passa de uma simples cópia do
bolchevismo. Por esta razão, a luta contra o fascismo deve começar pela luta
contra o bolchevismo.
Notas:
[1*] Stálin proclamava Lênin "o genial
mecânico da locomotiva da história". Encontram-se múltiplos exemplos desta
concepção mecanicista na prosa bolchevique, e em todos os domínios.
[2*] Sobre a política dos ultraesquerda no que respeita aos
sindicatos e o parlamento, ver: Pannekoek et les Conseils Ouvriers, H. Gorter,
Réponse à Lênin.
[3*] Laufenberg (1872-1932). Um dos organizadores da oposição de
extrema-esquerda em Hamburgo. Laufenberg e Wolfheim tinham pregado desde outubro
de 1918 "a tese da necessária transformação da revolução em guerra
revolucionária popular contra os imperialistas da Aliança, unidos com a Rússia
soviética" Cf. Pierre Broué, Revolução na Alemanha, Ed. de Minuit,
1971.
[4*] O nacionalista Schlageter tinha sido fuzilado
pelas tropas francesas quando da ocupação do Ruhr. Deu o seu nome à campanha
dirigida pelo KPD para atrair elementos nacionalistas pequeno-burgueses
influenciados pela propaganda fascista.
Living Marxism, Vol. 4, n.º 8 - Setembro de 1939
Fonte: http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1188/grupos_comunistasde_conselhos.
Fonte: http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1188/grupos_comunistasde_conselhos.
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